30 dezembro 2011

O abraço do trompetista ou A despedida

Para os lados do sitio havia um local bem iluminado, mesmo à beira-mar com areia entre, por cima e debaixo dos pés. Ouvia-se jazz acima de tudo, instrumental preferencialmente.
Existia a brisa pacifica com que o jazz acariciava o coração e as entranhas de quem lá permanecia sem nunca fazer questões.
Os dias não tinham horas, não havia noite, apenas ocasional escuridão, mas sempre confortável, calorosa, amiga.
Quem lá vivia não sabia gritar, não sabia da exaltação, da furia ou da raiva. Quem lá vivia aprendeu a ser e a representar o jazz melódico que acompanhava as rotinas. O som ecoava pelas ruas cuidadosamente limpas, com canteiros em toda a extensão. As casas eram brancas e as portas vermelhas ou azuis, as janelas eram habitualmente amarelas.
Ia de carro, sem rumo.
Desse dia lembro cada detalhe. por onde eu andava fazia frio, chovia torrencialmente e o meu interior estava partido em mil pedaços que se cravavam dentro e fora. No meu estomago, pulmões. Saíam-me das unhas e olhos fora, esses pedaços.
As mãos no volante sentia-as encharcadas em sangue que imaginava devia cobri-las, não confiava na negação disso pelos meus olhos, porque também eles eram só pequenas e cortantes particulas que brotavam, que rasgavam, que cegavam.
A amargura anunciada, as costelas a partirem-se de dentro para fora, o peito a abrir-se sobre si próprio, as entranhas despejadas no meu colo e eu sem poder fazer nada.
Eu a querer e a não poder. Eu a só ser capaz de segurar no volante e pisar os pedais.
Conduzi durante muito tempo, tenho quase a certeza de ter atropelado corpos que se estendiam no chão qual animal ferido em campo de batalha.
Quando inspirava só o cheiro a cinza, carne e podre.
Chovia muito, repito. Fazia um frio que se entranhava nos ossos, enfatizo. Era noite profunda e não havia luz.
Os corpos, deus, os corpos. Tantos corpos espalhados no chão. Pendurados nas varandas, nos candeeiros apagados, dentro dos carros parados. Os corpos inertes.
Os membros pendiam despreocupadamente, as roupas rasgadas, sapatos aleatoriamente perdidos e largados em estendais.
Os olhos vazios, quebrados, estáticos como em fotografias, pousados e cravados num horizonte que já não existia.
O trompete de Miles Davis a abraçar-nos a todos quase a compreender, quase a sorrir, quase a ser condescendente e a querer-nos num sitio melhor.
O som distinto e sôfrego da trompete a chorar copiosamente por todos nós, a pegar num lenço debruado a linha azul celeste e a limpar as lágrimas que ainda escorriam dos corpos. Ainda que inertes. Ainda que aparentemente mortos.
os meus dedos começaram a dançar em cima da pele macia do volante e os meus olhos fechei-os por não encontrar sentido em mantê-los abertos.
Devagar. Tão lentamente. Câmara lenta sem equipamento de video.
Os pedaços que me cortavam eram leves penas de veludo encarnado a acariciar-me o rosto. Como a melodia, a confortarem-me também. A saberem-me de fora para dentro, a gostarem de mim, a amarem-me ainda que eu fosse e estivesse danificada.
Quando voltei a abrir os olhos não ouvia gritos. Não sentia cheiro a morte ou podridão. O meu corpo não se quebrava ou abria. Não haviam vidros a cegarem-me.
Quando voltei a abrir os olhos vi casas brancas com portas vermelhas, senti areia quente debaixo dos pés, inspirei e só o mar ao fundo, escutei atentamente e só jazz, só a trompete de Miles Davis a sussurrar My Funny Valentine a abraçar-me ainda que sem braços, a amar-me ainda que imcompleta.
Quando voltei a abrir os olhos, deus, tu não estavas lá e eu, eu senti-me em casa pela ultima vez.

My Funny Valentine, by Miles Davis:  http://www.youtube.com/watch?v=HS2BUr83O-8

22 dezembro 2011

Rio de Janeiro com vista para o rio

O Rio de Janeiro não fica no Brasil, lá não faz calor, ou faz, mas não é o Sol quem o provoca.
O Rio de Janeiro é um sitio virado para o rio, com vista para o rio, com janelas grandes viradas para o rio. O rio, há sempre o rio ao fundo, até em dias de chuva, até em dias de tempestade.
O rio de janeiro é uma casa, tem paredes e portas, e móveis e livros e discos. Há muitos discos no rio de janeiro, muitos cadernos cheios de folhas em branco ansiosas para serem escritas e cantadas.
Há tesouras que cortam cabelos, há camas com cheiro a sexo misturado com olhares de milénios que não saem com o corpo, que se deixam ficar pousados na mesinha de cabeceira à espera que o sangue volte, e o confunda com o sexo e com a musica e com os livros.
Ao rio de janeiro chega-se sempre devagar, percorrem-se as estradas com calma e em silêncio. Deixam-se muitos espaços para a leveza que é sentir os sulcos da rua empedrada ou alcatroada, deixam-se lugares para trás, esquecem-se esses sitios porque o rio de janeiro é grande, muito maior que qualquer outro, não deixa espaço para outros, exige o esquecimento temporário do que existia antes.
O rio de janeiro vive-se a vulso. Estar-se lá é uma fenda no espaço e tempo. Há a musica, sempre musica. Os livros, sempre os livros. Os filmes, sempre os livros. Palavras, imensas. Das que se dizem, das que se sentem, das que se guardam e das que em vez de letras têm toques e beijos.
No rio de janeiro fazem-se planos, mas planos utopicos, daqueles que só ousamos fazer quando saimos do elevador para a porta de entrada, e da porta de entrada para o ar que só se respira no rio. São planos inocentes e felizes, são planos que se querem muito, que se desejam tanto, tanto...
Mas o rio de janeiro é egoista e ladrão, o que lá se passa não sai nunca mais. as musicas lá escutadas e dançadas nunca o serão em mais local nenhum. os livros lidos e discutidos ficam lá trancados em gavetas e prateleiras. os filmes só têm o sentido que o rio lhes dá, vistos de fora geram-se lacunas, geram-se confusões e aquilo já não faz sentido nenhum.
Para o rio vai-se para o rio. Não se vai para mais lado nenhum.
O rio de janeiro guarda todos os segredos do mundo, e todas as vontades, e todos os planos.
Quando se sai do rio de janeiro ficam os cabelos espalhados no chão, os discos dentro das capas, os livros enfiados nas estantes, os olhares pousados na mesa de cabeceira.
Quando sai do rio de janeiro a ultima vez sabia que nunca mais lá iria voltar, sabia-o e no entanto deixei lá os meus olhos dentro de um copo de agua. deixei-os porque fora daquelas paredes não existe nada que valha a pena ver com aqueles olhos que deixei esquecidos.
e quando penso no rio de janeiro com vista para o rio, quando o escrevo e quando o lembro, sei que ele está lá no mesmo sitio, e que aquilo que ele me diz baixinho, de mansinho, com a delicadeza importante que so os sitios como o rio têm, é que foram os abutres, que eu deixei que me usassem como alimento, que fizeram de mim uma coisa para a qual já não existe espaço dentro. uma coisa que deixou que as perdas e danos lhe toldassem as ideias e a beleza. uma coisa que tem que respirar fundo muitas vezes, inspirar com muita força para saber, ter a certeza absoluta, de que o rio de janeiro com vista para o rio não foi um sitio sonhado.
Tudo aconteceu.

13 dezembro 2011

"Punhos Cerrados" (news)

O meu livro "Punhos Cerrados" já está à venda no site da Chiado Editora (www.chiadoeditora.com, depois é só pesquisar por nome do livro (Punhos Cerrados) ou autor (Gil, Beatriz) e Voilá! adicionar ao carrinho de compras)

Palavras, emoções e Vénias para todos os que me Lêem*

12 dezembro 2011

Inevitabilidade

Às vezes, como agora, parece-me uma total e completa estupidez escrever.
Não o acto de escrever, organizar letras até que formem palavras, e palavras que formarão frases, mas escrever passando uma mensagem através daquilo que temos dentro.
Não, também não falo de escrever debitando matéria em testes da escola, cartas, acordos ou contratos, mas escrever a vida e as emoções.
Viver disso, quero dizer.
E o que é isso de se ser escritor?
Quando passamos a sê-lo? Quem nos confere esse titulo, nós ou os outros? Se os outros, que outros?
È necessário editar um livro e ser um sucesso de vendas, ganhar prémios e consursos literários, estar no Top de vendas? Ou basta escrevermos para nós, às escondidas e às escuras, enfiados na cama a rever mentalmente aquilo que se nos explode boca fora?
Questiono porque desde sempre que esta foi uma certeza inabalável para mim, na minha cabeça de 5, 10, 12, 20 anos, que tenho dias em que me parece ridiculo não me afirmar como sendo, de facto, escritora, e outros em que vou ao banco, à loja do cidadão, em que conheço alguém no Bairro Alto, e me perguntam:

- Entao, qual é a tua profissão? ou Então, o que é que fazes?
e eu, apesar das minhas inabaláveis certezas, me sentir patética ao responder
- Sou escritora. ou Escrevo.

Que raio de coisa é essa de se escrever? E em boa verdade, que sei eu disso...desse bicho que é a Palavra?
E quando me sento a escrever e o meu olhar salta da mesa para o bloco de folhas e do bloco para a caneta e da caneta para a mesa ao lado e da mesa ao lado para a janela, e os meus pensamentos pulam do significado daquilo que sinto para a forma como o quero descrever e da forma como o quero descrever para o valor do que escrevo e do valor do que escrevo novamente para a eterna questão que me assombra e afunda, que me preenche tão totalmente como me provoca grandes e profundos buracos negros dentro

- Quem sou eu?

Sou aquilo que sinto e me persegue qual falcão desde que me (re)conheço, e antes disso ainda, porque antes de nos (re)conhecermos já existiamos dentro de tudo, já éramos matéria, e certezas, e vida, e desejos, e vontades, antes de tudo aquilo que existe
(os carros, as casas, as canetas, os blocos de papel, as pedras, os rios, o mar e a lua)
já existíamos dentro de tudo.

ou

Não sou de facto nada, não faço nada, nada me define. Nada é meu a não serem as minhas esferográficas, os meus cadernos, as minhas palavras escondidas e escuras, as minhas histórias sempre demasiado tristes, a minha certeza individual, o meu inferno pessoal, de que, talvez, em dias que são bons dentro de mim, eu possa ser uma escritora.
E é por isso que quando me perguntam:

- Então qual é a tua profissão? ou Então o que é que fazes?
eu digo
- Nenhuma. ou Nada.

e de vez em quando, só de vez em quando, fico quase feliz porque sei, no mais fundo de mim, que esse nada é tudo, é a minha certeza pessoal, é a minha inevitabilidade. Estar e ser escritora.
Está-me no sangue, não é algo do qual possa simplesmente ver-me livre. Um pouco como o verdadeiro amor, do qual temos muito pouco a dizer ou decidir.
Não é uma escolha, é uma condição. È um estado de espirito em estado sólido, cimentado, acorrentado, condenado, escrito.

Lançamento "Punhos Cerrados"

E foi dia 3 de Dezembro que, na livraria Les Enfants Terribles, foi lançado o meu primeiro "bebé" literário, "Punhos Cerrados".

"Caro Leitor,
Esta não é uma história feliz. Não é uma daquelas narrativas da pancadinha nas costas, com sorrisos confortantes em que a protagonista atravessa uma série de infortúnios até chegar a um momento crucial do qual sai ilesa e plenamente realizada.
Esta é, isso sim, uma história em que as emoções se atropelam num ringue de boxe, em que as palavras jorram como murros no estômago e em que aquilo que parece verdade, de um momento para o outro, se revela uma mentira.
A protagonista não é uma qualquer rapariga cheia de boas intenções, com um fundo tão puro que poderia ser santa. È antes uma jovem atormentada por dores excruciantes com milénios de historia, consumida por fantasmas e inocências perdidas.
É possível, meu caro leitor, que atinja um ponto da narrativa em que se lhe corroam as vísceras e lhe custe aceitar o parágrafo seguinte, mas garanto-lhe, esta história podia ser real, tão real quanto qualquer sonho ou pesadelo o sejam.
Por isso peço-lhe, dê uma oportunidade a Ter. Às suas dores, angustias, realidade um tanto ou quanto distorcida, emoções em catadupa e honestidade.
Porque esta pode não ser uma história feliz mas é, sem dúvida alguma, uma história honesta, mágica e sincera."

Por enquanto o livro está apenas disponivel através de mim (beatrizmfgil@gmail.com). Dentro de pouco tempo estará disponivel para compra através do site da Chiado Editora (www.chiadoeditora.com), e no próximo ano em livrarias em todo o país (quando tiver certezas postarei os locais certos).

Muitas letras, palavras, emoções e coisas dentro para todos,
uma vénia a vocês, que me lêem*

28 outubro 2011

um dos dias mais tristes da minha vida

"o dia em que o meu avô morrer vai ser um dos dias mais tristes da minha vida", dizia eu sem nunca acreditar realmente que ele iria um dia, efectivamente, morrer.

Foi há quase um ano e há quase um ano que conto os meses a partir desse quase um ano, como se a vida, como que por magia, tivesse começado nesse dia.
Desde há um ano que os meses, as semanas e as horas têm o peso da morte, sempre o peso da morte e da ausencia, sempre a secreta esperança de que há um ano não tenha acontecido. na verdade foi há quase um ano como poderia ter sido ontem ou há 5 anos, o vazio que ficou é igualmente sem fundo, irremediavel e inacreditavel.
- Bom dia gilette azul!
a voz dele a cantar à porta do quarto para nos acordar para ir para a praia. quando era miuda tinha sempre muito sono, um sono terrivel. só acordava realmente após a segunda chamada e o sono era substituido pelo cheiro das torradas acabadas de fazer e pela excitação de ir fazer pães-de-açucar, jogar às raquetes e nadar até à bóia, sabê-lo sempre ali, forte, confiante, seguro, quase indestrutivel!
depois, com o tempo e as manias de adolescente, a voz dele era quase um incomodo, quase um despertador que me irritava, a ressaca a latejar na cabeça e o meu corpo a recusar-se, a não querer saber dos pães-de-açucar ou das raquetes, a não ter forças para nadar até à bóia, a vê-lo sempre como um porto seguro, onde poderia regressar sempre que quisesse.
(não imaginava ainda como me enganava, como nos enganamos sempre tanto quando somos adolescentes e tomamos o mundo por garantido)
juro, se ele hoje
- Bom dia gillete azul!
eu me comovia tanto, que me comovia até às mais profundas lágrimas. tenho a certeza, se ele voltar, eu volto a adorar pães-de-açucar. juro que nado com ele até á bóia e seguro-lhe na mão com tanta força que há quase um ano não existiu, prometo que não aconteceu, e perdoo-lhe, a serio que o perdoo pela brincadeira de mau gosto (onde é que já se viu desaparecer assim durante quase um ano, sem dar noticias, sem o cheiro das torradas, sem a nitida sensação de segurança inabalável).
foi há quase um ano, e durante esse ano aconteceu uma vida inteira: a empresa insolveu-se, a avó ficou irremediavelmente triste, a minha irmã ficou noiva, o meu pai foi e voltou de Angola, eu tentei suicidar-me, editei um livro e apaixonei-me. e no entanto, foi tudo há quase um ano, há meses... tudo, no dia de hoje é contado pelos meses que vão pesando mais e mais no misterio do desaparecimento do meu avô, e podia ter sido ontem ou há 5 anos que queria dizer exactamente a mesma coisa.
se voltares, avô, prometo que te deixo orgulhoso de mim, prometo que jogo contigo à bola.
é que sabes, o meu filho sabe de cor a história da tua morte e sempre que a conta fica tudo suspenso, na secreta esperança de te ver chegar, porque convenhamos, uma criança quando conta uma história ela não pode nunca ser ter sido real, é sempre um conto de fadas, uma mentira, uma negação.

"o dia em que o meu avô morrer vai ser um dos dias mais tristes da minha vida", e foi, e é. e daqui a quase um ano continuará a ser.
se não voltares, avô, juro que há quase um ano será um dos dias mais tristes da minha vida.

22 outubro 2011

Quanta vida queres?

Quanta vida queres?
Uma que dure muitos anos...poucos?
Uma que seja intensa, cheia de medos, incertezas, trambolhões no empedrado... sorrisos pendurados no estendal da roupa, o toque que arrepia de quem se ama, o turbilhão que é sentir-se tanto que se julga que o coração há-de martelar-nos no peito até que saia fora, até que o seguremos com as proprias mãos, até que sangre varanda abaixo e deixe finalmente de bater?
[ou]
Uma tranquila, sem grandes sobressaltos, a escolher amar aquilo que é bom para nós e a sabermos perfeitamente que isso nunca se assemelhará, nem de perto nem de longe, a amar verdadeiramente, mas que ainda assim, a felicidade de remissa nos deixa tão mais seguros, estáveis, sossegados?

Quanta vida queres?

Nem todos vão compreender,aceitar, nem tão pouco gostar, mas perdendo aquilo que nos define, aquilo que nos permite fazer essa distinção, perdemos o direito à escolha mais importante de toda a nossa vida:

Afinal de contas, quanta é a vida que queremos?

20 outubro 2011

Cerebro hiperactivo ou O vazio do pensamento

passam-se as escadas, as entradas dos prédios, os cafés crivados de gente, as salas de cinema a prometerem finais felizes. passam-se as casas, os pinhais, a Dona Maria a vender flores na esquina. passam-se os caracóis a dormir preguiçosamente ao sol, as rosas vermelhas, foge-se das abelhas e dos lagartos, passam-se as estradas e os carros, os jardins.
acena-se ao Sr. Joaquim do talho, à Clarinha a brincar ao pião, ao João e ao Pedro a trocar cromos, ao Carlos da mercearia, à Sra da papelaria de quem nunca soubemos o nome (só o sorriso).
Cai a noite do lado de lá cidade, gosta-se do rio, quieto, quase parado, quase a esquecer que dentro taínhas, latas de sumo, estacas, pacotes de Matutano e preservativos. gosta-se do rio á superficie, julgam-se-lhe peixes coloridos, pedras macias, algas entrelaçadas num jogo de verdes de perder de vista.
caminha-se na margem, pisa-se a calçada [agora uma carica que faz "crsh" e depois uma beata que não faz barulho nenhum], pensa-se pouco, quase nada. Gosta-se do branco tão branco dentro da cabeça, detesta-se o burburinho dos carros e das buzinas.
Na madrugada quer-se um bar cheio de musica e corpos a dançar. Quer-se um fino bem sacado para ajudar à secura. Quer-se a musica alta, muito mais alta, tão mais alta. Quer-se esquecer, embriagar, confundir, julgar que não e logo a seguir que sim. Quer-se a gargalhada lá ao fundo, quer-se descobrir o rosto da gargalhada, quer-se muito, mas ele foge. acaba-se a gargalhada, acaba-se o fino.
acaba-se outro fino e outro que tal, encontra-se a gargalhada caída no chão. come-se a gargalhada e depois disso mais nada, que o cerebro já está cansado de não pensar em nada. que o cerebro está cansado de passar, de fugir, de acenar, de julgar, de querer e de acabar. depois disso fica a gargalhada pendurada nos lábios, a gargalhada roubada, a gargalhada caída no chão.

19 outubro 2011

Enquanto a cafeteira derrama o leite

Vivia num daqueles apartamentos pequeninos, mas acolhedores de Alfama. Tinha vários canteiros de flores no varadim e vasos espalhados por toda a cozinha onde, com orgulho, plantava ervas aromáticas.
Profissão não a tinha, tinha um trabalho que lhe preenchia quase todas as horas, menos aquelas que passava no jardim junto à Feira da Ladra, onde se deliciava com as reliquias que os vendedores, sempre simpáticos, lhe mostravam, quais tesouros. Dizia recorrentemente que não tinha profissão porque dela não advinham grandes lucros financeiros, em oposição a ter o trabalho de expelir a alma todos os dias para folhas de papel que lhe valiam o suficiente para se sentir quase feliz, quase realizada, quase despida, quase, sempre quase a ficar vazia de emoções.
Naquela manhã, como em todas as outras, acordou e, enquanto o leite aquecia na cafeteira, sentou-se na mesa de madeira e ficou a admirar-lhe os veios entrelaçados com o fumo do cigarro que fazia questão de fumar em jejum (sempre tinha gostado da tontura matinal que provocava a nicotina quando lhe entrava no sistema).
Teve tempo para pensar em tudo, pensou que devia deixar de fumar, que devia de deixar de beber café. Que devia fazer uma visita à avó no lar com Alzheimer, que não a reconheceria. Que devia ligar à mãe e perguntar-lhe como estavam os cães, à irmã para saber do seu emprego precário e do casamento à porta que a entediava de morte. Devia fazer um telefonema ao irmão, saber-lhe as novidades da viagem que havia começado há um ano na Tailandia e que se tinha prolongado por tempo indefinido. Devia ir ao cemitério, deixar uma flor na campa do pai e vir-se embora muito rápido antes que as lágrimas lhe devorassem os olhos. Pensou ainda que devia ter mais cuidado com a alimentação, que devia comer sempre três refeições por dia e que antes de dormir devia levar para a mesinha de cabeceira um copo de leite.
O som da cafeteira a chiar deixou-lhe os pensamentos em suspenso. Leite por tudo quanto era sitio, a escorrer pelo fogão e a deixar no ar aquele cheiro horrivel. Enquanto se deixou ficar a olhar para aquela bagunça toda a olhá-la com ar ameaçador, permitiu-se voltar á enumeração de todas as coisas que devia fazer.
Devia comprar uma televisão, uma qualquer, desde que tivesse 70 canais e acesso ao canal de que tinha ouvido falar, que passava 24 sobre 24 horas o ultimo reality show que andava nas bocas de toda a gente. Devia comprar uns sapatos altos, muito altos, daqueles que deixam as mulheres incrivelmente elegantes mas tão dolorosamente magoadas e cheias de gretas nos pés. Devia ir a um Centro Comercial e ficar a passear entre montras, mostrar-me maravilhada com os saldos e sentir-se tentada a gastar muito dinheiro numa única saia. Devia aceitar o pedido de casamento do Diogo, vestir-se de branco e jurar em frente a um deus em quem não acredita, que aquela é a pessoa com quem quer passar o resto da sua vida, na pobreza e na riqueza, na saude e na doença. Devia deixar de escrever, ter uma vida melhor, quem sabe ser até uma pessoa melhor se o fizesse, gostar mais da vida que tinha, se deixasse de escrever.
Viu-se portanto entre a espada e a parede. Limpou o leite derramado e tomou a maior decisão da sua vida.
Amarrou um cachecol ao candeeiro da sala e saltou em direcção à carpete, onde os seus pés não voltaram a tocar.
No mesmo dia muitas pessoas receberam a mesma mensagem telefónica deixada no atendedor de chamadas, mãe, irmã, irmão, Diogo e até o coveiro a pegarem no telefone e junto ao ouvido, baixinho:
"è isto que eu tenho a dizer em relação àquilo em que vocês me querem transformar"

17 outubro 2011

cada vez tenho mais medo das crianças

cada vez tenho mais medo das crianças.
são criaturas sábias mas sem autonomia. roubam-nos todas as comoções, arrancam de nós aquilo que temos de melhor, têm vozes de anjos e convencem-nos das maiores barbaridades de que a nossa civilização se lembrou de inventar.
olham-nos com aqueles olhos pequeninos e sabem exactamente aquilo em que pensamos retirando tudo o que é acessório e deixando à mostra só aquilo que realmente importa. medo, cansaço, perdição, desilusão. sabem-nos tudinho, as crianças e nós nunca sabemos nada delas.
são perigosas, fazem-nos querer ter mais e deixam-nos à beira de um ataque de panico por sabermos que elas merecem tão mais do que aquilo que lhes podemos oferecer.
é um crime grande, as crianças. são as maiores criminosas, as crianças, porque matam, roubam, e cometem todos os crimes da alma num unico olhar, só através do toque são capazes de nos virar o mundo de pantanas e de nos fazer chorar muito.
logo nós, que nunca choramos. logo nós, que nunca amamos. logo nós, que nunca nos apaixonamos.
é facil...basta existir uma criança por perto que nos amoleça o coração para que tudo aquilo que pensámos ter por certo seja uma mentira redobrada.
logo nós, que nos julgavamos impenetráveis.
cada vez tenho mais medo das crianças porque as amo. e o amor é uma coisa da qual se tem medo.

14 outubro 2011

deixa que te diga, antes que as luzes se apaguem e caiam as cortinas...

és egocentrico, pseudo-intelectual, egoista e julgas que tens o rei na barriga.
embrulhas o que dizes em coisas que não fazem sentido algum para ninguém a não ser para ti proprio. pensas que vives do que amas, esqueceste que já não é possivel viver-se do que ama. ama-se aquilo do que se vive e com alguma sorte, as coincidencias ditam que os dois conceitos se encontrem algures a meio caminho.
sim, vou deixar que o que sinto cresça livremente dentro de mim, e tu nunca saberás que isto é sobre ti, e que isto que sinto não é, nem de perto nem de longe alguma coisa que se assemelhe, nem levemente, a ódio.

12 outubro 2011

Actores ou Os saltimbancos da alma

Se existe uma raça que eu não suporto, esta tem que pertencer à raça dos actores.
Sempre prontos, sempre adoráveis, sorridentes, amorosos e cultos. Sempre tão bem informados de tudo que até mete medo.
[e o brilho nos olhos dos actores...onde é que já se viu ter-se aquele brilho nos olhos?]
Detesto-os. Sempre que a minha vida, acidentalmente, se cruzou com um que ficou tudo virado do avesso. Mudei sempre de opinião. Passei do extremo de lhes detestar as rugas do rosto, até à loucura de lhes adorar os movimentos, a forma como são capazes de transformar aquilo que não está, numa coisa banal tão unicamente possivel, tão incontestavelmente palpavel.
Quando os actores sentem alguma coisa ela parece que lhes é cuspida pelos olhos, que os envolve uma aurea de infinitas possibilidades e os sonhos mortos ressuscitam [não miraculosamente, qual banha da cobra de 3 tostões] como se não fizesse sentido que fosse de outra forma.
Têm a confiança de quem há muito aprendeu a dominar a arte da ludibriação e rejubilam com as infinitas formas e modos com que conseguem convencer alguém de que tudo aquilo que era certo, não, é uma erro. Crasso.
Os actores obrigam-nos a querer saber mais, a descobrir a arte de encorporar toda uma outra vida e personalidade num piscar de olhos.
[e vêem.vêem como ninguém]
Quando olham para nós, quero dizer, quando olham directamente para nós, é como se nos despissem e nos perscrutassem a alma. Descobrem-nos todos os podres, arrasam-nos.
São seres pacientes, cheios da manha de uma criança de 5 anos. São seres perigosos porque uma vez que entrem
[qual furacão]
na nossa vida, não desaparecem até que tenham arrebanhado de nós todas as verdades e certezas.
Quando um actor diz:
hoje estas muito bonita!
pode querer dizer todas essas palavras, tecê-las letra por letra, e ainda assim juntar-lhes tantas outras que eles acham que nuncaa iremos saber quais são.
Roubam-nos as verdades mas não permitem que as suas sejam roubadas.
São criaturas às tantas egoístas. Criaturas vampiras. Julgam conhecer-nos e a verdade é que o mais provavel é que conheçam.
È mais provavel, aliás, que nos conheçam desde o primeiro momento em que nos puseram a vista em cima e nós
[a passar estrada fora do sinal, a beber café, a fumar cigarros, a pensar que somos impenetráveis].
E eles ali, silenciosos, pacientes, a verem-nos e saberem de cor a cor do nosso cabelo, a saberem melhor que nós que se passámos a estrada fora do sinal foi porque tinhamos a cabeça estatica num palco qualquer que nos aceitasse os defeitos, as cicatrizes e os lados errados do coração, porque afinal de contas... seria apenas teatro.

11 outubro 2011

Cântico Negro (de J.Régio)

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

07 outubro 2011

De quantas ruínas se constrói o ser humano?

Quão vazia pode uma pessoa estar? Durante quanto tempo?
Quantas estradas serão necessárias até que seja preenchido o buraco que os anos de abandono provocaram?
De quantos erros nos podemos arrepender? Existe um limite?
Quanta vida pode alguém desperdiçar enquanto procura desesperadamente um rumo, um sentido?
Pode alguém desejar o fim e ao mesmo tempo, implorar para que seja salvo?
Como se afoga a cabeça e se deixa o resto do corpo à tona, à espera de um vislumbre de um caminho digno de percorrer?
Quantos enganos suporta a alma humana? Quais enganos? Serão enganos?
Quanto sexo é aceitável? Como saber que já chega? Quanto do sexo pode ser amor, e quanto desse amor pode ser efectivamente real?
De quantas frustrações vive o ser humano?
A vida, escolhemo-la ou é ela que nos escolhe a nós? Escolhemo-la ou vivêmo-la?
Somos naufragos, naufrágios ou toda uma cadeia de afogamentos?
Quantos atropelamentos e fuga podemos suportar? Quantos deles devemos aceitar? Quantos esquecer (e como), e quantos guardar dentro de nós?
De quantas mutilações pode alguém ser vitima? Será vitima? Quererá sê-lo? Ou tornar-se-á vitima sendo o agressor?
Quantos anos vale a vida humana? Existe uma média, uma justa média para que se possa dizer que já chega? Serão 60, 70...100? Ou 10, 20...40? Quem o dita, quem bate o martelo e afirma que ainda é cedo (ou já é demasiado tarde) para descontinuar o produto?
Porque se excedem todos os limites e ainda assim ninguém se dá por satisfeito?
Quantas desculpas pode alguém ter para acabar com tudo? E para continuar? Caberão todas elas na balança, terão realmente algum peso na decisão final? Serão lógicas e ponderadas ou tomadas no calor do momento (e não serão estas ultimas as mais honestas?)
Seremos assim tão importantes e valiosos ao ponto de nos julgarmos a raça soberana?
Não serão os outros, os "irracionais", soberanos em nosso lugar? Não terão eles mais anos, mais experiencia, mais valores que todos nós juntos e enroscados num edificio de 100 andares?
Em quantos escombros nos podemos esconder?
Saberemos fazer um real balanço da nossa existencia, sem falsas pretensões ou parcialidades?
Poderemos salvar-nos do caos, ou é ele quem nos salva a nós?
Somos descartáveis, e sabendo disso queremos à força a eternidade da memória?
Quão exaustos e totalmente vencidos nos podemos sentir após tantas questões sem resposta? Queremos sabê-las de facto, as respostas? Ou serão elas mais uma desculpa sem argumento?
Digam-me, queremos a luta ou, em determinados dias, precisamos apenas de um sitio para descansar?

"De quantas ruinas se constrói o ser humano?"

05 outubro 2011

Mutila-me

Anda, destrona-me, humilha-me, quebra-me, bate-me, morde-me, come-me as entranhas e deixa à mostra os órgãos para que todos os vejam.
Assina o teu nome na minha pele. Assim, eu mostro-te: cortas e espetas na carne, depois vais desenhando com cuidado as letras do teu nome até que se vejam bem os golpes e a tua identidade orgulhosa do feito.
Anda, mostra-me do que és capaz.
Pisa-me o ventre com força, espeta os teus dedos nos meus olhos. Cega-me, deixa que não veja, mostra alguma misericordia, sê um monstro gentil, com hábitos antigos de ternura.
Isso, sim. Sussurra-me ao ouvido em dialeto de milénios a grande cabra que eu sou. Insulta-me, faz-me chorar.
Não te surpreenderia que pedisse por mais, pois não?
Abomina-me e pontapeia-me. Grita-me e pergunta muitas vezes porquê.
Agora sim, estamos a chegar lá, repete o meu nome até que ele não faça sentido, esquece-te de mim, e de ti.
Maltrata-me até que o meu rosto te seja irreconhecível. Pendura-me numa àrvore enquanto ainda estou viva, e dança sob a chuva quente do meu sangue.
Ainda assim desiludes-me. Continuas a perguntar porquê e sabes a resposta. Anda, não sejas ingénuo, sabes bem que fui eu quem criou o monstro em que te tornaste.
Irrita-te. Revolta-te. Destrói tudo até que se vejam as emoções, até que o que sentimos seja palpavel.

Sim, só agora, meu amor, me vais ouvir dizer que te amo.

O Escritor (de J.L.Peixoto)

ele disse não sei porque escrevo o teu nome.
eu olhei para ele. eu disse o meu nome não
é tudo o que podes escrever.

ele escrevia o meu nome num papel. ele sentava-se
numa cadeira e o luar era a luz de um candeeiro
sobre as palavras escritas

ele disse amo-te.

ele disse tenho medo que um dia deixe de poder
escrever o teu nome. eu disse o meu nome não
é tudo o que podes escrever.

ele escreveu o meu nome durante muitos anos.
e eu perguntei porque continuas a escrever
o meu nome? ele olhou para mim. e perguntou
quem és tu?

03 outubro 2011

só não te perdoo que tenhas tido que me matar

Se, por algum acaso, já sabes para o que vim, porque continuas a cravar as tuas unhas na parede imóvel e estatica de casa?
Se sabes que não te posso tocar, porque insistes em abraçar o vento em busca do meu corpo?
Sabendo que não te respondo, porque me perguntas onde estou?
Se sabes, que até ao meu ultimo suspiro te amei, porque continuas a pedir-me perdão?
Dentro de mim guardo o carinho da hora em que me mataste. Foste agressivo, no entanto terno, soubeste colocar em cada golpe que desferias no meu corpo todo o amor que sei que sentias por mim.
Não me debati, digo-te, porque sabia que o que pretendias era alguma da tranquilidade que o que sentias por mim não te deixava ter, procuravas libertação, não raiva ou abandono.
Não continues nesse lamento histerico, não abraces a minha campa, é fria, dura e eu já lá não estou.
Vim só para te dizer adeus, porque quando me visitas, não consigo deixar de me comover com o quão preso tens estado à minha memoria.
Vim só para dizer adeus, porque mesmo depois de morta, quero com todas as forças que sejas feliz e gostava, se mo permitires, que me deixasses ficar-te na memória, para que permaneças na minha como o ponto de interrogação que sempre foste e quiseste ser. Não deixes que a minha morte às tuas mãos te guie no sentido contrário. O sentido contrario só te conduz para mais longe de mim.
Perdoo-te tudo, sempre o fiz. Só não te perdoo que tenhas tido que me matar para compreenderes que afinal me amavas e que hoje te tenhas esvaziado de tal modo que ficaste com a alma cheia de nadas.

02 outubro 2011

Violada

Antes de tudo sentia percorrer-lhe um tremor. Um tremor que saía do peito e cavalgava pelos órgãos fora.
Batia o pé com toda a força que lhe restava e mordia os lábios, queria expulsar aquela onda e ela parava.
Sentia-a outra vez, mais perto, mais forte. Mudava de pé, prendia o olhar no horizonte e reprimia a raiva. Engolia-a. Comia-a. Devorava-a.
O coração esmurrava-lhe o peito, espancava-lhe a existencia. E ela sempre sem desistir, a bater ainda com mais força com os pés no chão. Juntou-lhes as mãos na demanda, entrelaçou-as uma na outra e cravou-lhes as unhas com furia.
O tremor quase a chegar-lhe aos lábios, sentia-o passar lentamente no pescoço e quase a segredar-lhe aos ouvidos. Sacudiu-os e sentiu-os humidos. não compreendia porquê até sentir uma gota escarlate respingar-lhe nas pernas despidas. Eram as mãos, sangrava.
Rasgou um bocado da saia, ou o que tinha restado dela, e embrulhou os dedos. Deixou-se ficar um bom bocado a observar o tecido claro tomar o tom avermelhado do sangue, julgou por instantes gostar daquilo que via. Sabia-o dela o sangue, ainda dela aquele sangue.
Sossegou os pés e a cabeça descaiu mais um pouco, as forças esvaiam-se como que sugadas demoradamente.
Os olhos pousaram no que horas antes tinha sido a sua roupa interior e dentro da cabeça um grito. Um grito ensurdecedor, suplicante, dorido, amordaçado.
Sentia na boca alguns dos seus cabelos arrancados. Na barriga marcas de mãos. Não as dela.
O tremor a voltar e ela quase a desistir. Quase a querer que chegue rápido aos olhos, mas no ultimo instante a recuar e a deixar-se ficar no pescoço onde ainda tinha as alças do soutien amarradas.
Largou o tecido que lhe envolvia os dedos e quis percorrer o corpo semi-nu, saber o que restava dele, quem sabe reconhecer-lhe a anca, a cintura, as costas, o sexo.
Só ardor. Ardor e pisaduras. Pisaduras e feridas. Feridas e mais sangue.
Percorreu o peito ao de leve e sentiu fogo a queimar-lhe a pele. Fogo e medo. Medo e vergonha.
O tremor chegou por fim aos lábios e com ele sussuros que não controlava, soluços, pequenos apelos, suplicas quase silenciosas.
Deixou que lhe chegasse às palpebras e quando por fim chegou, sentiu uma nova gota restolhar-lhe na palma da mão ensanguentada.
Uma gota límpida, translucida, fresca, quase cheia de ternura. Quis certificar-se e levou-a à boca, salgada. Uma lágrima, a primeira lágrima. A unica coisa que não lhe roubaram, que era tão somente sua e que tinha conseguido reprimir dentro até agora. Uma lágrima.
Sorriu.
Depois fechou os olhos, deixou-se cair pesadamente sobre o lajedo e não gritou quando a cabeça embateu violentamente no chão.
Deixou que as lágrimas se misturassem com o sangue e morreu com a secreta esperança de que algures, houvesse alguém à sua espera num sitio qualquer, que lhe devolvesse a identidade, a alma, a dignidade e

a existencia.

27 setembro 2011

Motivos Errados

Desde que, acidentalmente, viemos morar para o mesmo prédio e sem darmos por isso chocamos no corredor do 4ºandar,
(latas de atum, papel higienico, pasta dos dentes, tomates, batatas e se bem me recordo, um pacote de arroz, tudo a voar pelo ar)
que nunca mais fui capaz de tirar a vista de cima dela. Talvez seja por ser homem e ela uma mulher, podem culpar as hormonas, os livros, os filmes, a casualidade ou o seu gosto impecável para musica. Seja como e o que for, que desde esse momento que revejo muitas vezes na cabeça como instantes congelados, ou em camara-lenta, aproximando-nos vagarosamente do momento em que embatemos um no outro e ficou tudo aos saltos corredor fora, até as mercearias...até o meu coração.
O que ela tinha, infelizmente, era uma tendencia horrivel para querer as coisas pelos motivos errados. Quis um gato, não para lhe fazer companhia, mas para lhe matar as moscas e insectos da casa. Quis um guarda-chuva às bolinhas pretas com fundo vermelho, nao para, lá está, a guardar da chuva, mas para levar em longos passeios no pico do Verão avenida fora, qual Lolita. Depois quis comprar um televisor novo, não para o ligar, só para o ter ali, dizia que era reconfortante saber que se chegasse o dia em que sentisse a solidão insuportavel, teria o equipamento necessario para a combater.
Enganava-se muito, é certo.
O gato só queria dormir, o guarda-chuva fazia efeito estufa e rapidamente foi enconstado a um canto e no fundo, ela sempre soube que a televisão não cura a solidão, agudiza-a.
Mas o tanto que eu gostava dela. Seriam os olhos dela, sempre a sorrir. A boca, sempre a dizer aquilo que a cabeça pensava independentemente de correr serios riscos de passar por louca. O corpo esguio que a guiava sempre com o cabelo apanhado no cimo da nuca a baloiçar nas costas.
Houve um dia que me disse que queria morrer, e eu, cobarde, não fui capaz de lhe dizer nada. Encolhi os ombros e puxei um cigarro do maço pousado na mesa do café.
E ela a repetir: Quero morrer, ouviste?
E eu já sem ouvir nada, a não querer ouvir nada, a saber que não havia motivo, ou que se o houvesse, como de resto já ela me tinha habituado, seria o motivo errado.
Nessa noite houve muito barulho, muito ruido a vir do apartamento dela, paredes meias com o meu. Chegou muito tarde, já a madrugada se transformava em manhã e um estrondo no corredor. Estupido, espreitei no buraquinho da porta e ela ali caida no chão a rir-se muito alto, enrolada com um tipo qualquer que tinha mesmo ar de quem só a queria para a foder. Que poderia saber ele do seu sorriso, dos seus cabelos, do seu andar, das coisas que aspirava ter ou ser, ou querer?
O barulho prolongou-se durante um par de horas. Gemidos entrecortados e respirações ofegantes que eu não conseguia perceber se eram dele ou dela,
(e que importa isso?)
coisas a partirem-se e de novo o riso dela, muito alto, tão completamente embriagado daquilo que ela achava que era o que queria, e mais uma vez a enganar-se tanto, a rebaixar-se tanto, a deixar-se usar tanto.
No dia seguinte, à hora do jantar, apareceu-me em casa com um ar muito envergonhado. Os olhos tinham grandes papos escuros e os olhos meio vidrados ou fechados ou lá o que era aquilo.
- Desculpa o barulho hoje de manhã.
e depois a soltar um risinho abafado, a parecer uma miudita pequena, infantil, insignificante, desinteressante e tão ridiculamente oca, tudo aquilo que ela não era... e mais uma vez, pelos motivos errados.
E eu a zangar-me muito com ela, a chamar-lhe puta e cabra e criança, a atiçar-lhe o coiro, a humilhá-la, a querer que ela se revoltasse muito comigo, que me encostasse à parede e me dissesse para me meter na minha vida, e que me dissesse o quão boa tinha sido a foda daquela manhã, e que eu era um sacana desgraçado por não lhe ter dado ouvidos quando ela insistiu comigo que queria morrer, que eu era um monte de merda por não compreender que os motivos dela podiam ser os errados, mas que eram os dela, o que era mais do que eu tinha, que nem sequer os tinha, nem errados nem certos.
Sim, isto era o que ela devia ter feito. Ao invés disso escondeu-se timidamente entre as palmas das mãos, chorou baixinho e repetiu muitas vezes a palavra "desculpa", enquanto eu, o sacana, lhe roubava os motivos e a reduzia a uma insignificancia que ela não merecia.
No dia seguinte ela não apareceu, nem no outro, nem no outro depois desse...o dia seguinte foram todos os dias seguintes que se atropelam em catadupa até hoje, 7 anos depois, a escrevo e lhe quero dizer, esteja ela onde estiver, que eu fui um monte de merda, um sacana, um pulha, um crapula, mas que fui todas essas coisas e mais outra qualquer que a amava de perdição, e que até hoje se pergunta, continuamente, quem era ele para lhe julgar os motivos?
O crápula que a amava pelos motivos errados.

23 setembro 2011

Iniciar uma guerra ou O dilema dos Srs das Grandes Potencias Mundiais

hoje estava capaz de iniciar uma guerra. uma qualquer, cheia de importancia, pontos de vista revolucionarios e reinvindicações bem argumentadas, ou então não. Ou então uma guerra sem fundamento nenhum, só porque sim, só porque o Sol se vai esconder e as folhas vão começar a cair que nem tordos e a encher os passeios de tapetes crocantes que fazem "crsh-crsh" quando passamos.
não consigo decidir se a guerra seria fria ou quente, se teria morteiros ou cravos, se existiria sangue arrebanhado ou recibos verdes a voar pelo ar. não sei sequer se queria que fosse uma coisa organizada, com cartazes e megafones, ou uma coisa solitária, só eu no meio da praça do rossio a repetir baixinho de mim para mim: Hoje começou a guerra!
gostava de envergar orgulhosamente uma camisola do PC, ou vestia as calças de ganga mais desbotadas e rasgadas e uma qualquer t-shirt básica enfiada a pressa entre os braços? não sei. mas julgo que seria a mesma coisa, ou não, e então teria um problema entre mãos.
tenho a certeza que hoje acordei com esta sede diabólica de iniciar uma guerra. não estou segura de como isto foi acontecer, mas estou quase certa que foram os pratos todos da cozinha que levava empilhados no tabuleiro e que se estatelaram no chão sem qualquer aviso, e me deixaram o cerebro e a alma assim, em polvorosa. terão sido as noticias, cada vez mais deprimentes? ou o café que bebi, paguei e estava queimado? caramba, que dilemas estes...
não compreendo como podem os Srs das Grandes Potencias Mundiais declarar guerras assim, por dá cá aquela palha, isto é complicado de se decidir. não bastam as pessoas envolvidas, ainda há que pensar nas armas, no local, nas baixas, na vestimenta, nos mantimentos, na duração! credo...a duração!
como se decide quanto tempo merece alguém ver a luz do sol? quantos abraços da familia merece aquela criança antes de ser levada para o cu do mundo (na melhor das hipoteses)? quanto tiros se hão-de disparar até que se chegue à conta certa? quantas vidas e durante quanto tempo as havemos de torturar? como se resolvem as questões traumaticas, as casas em chamas, as ruas escavacadas, as lágrimas estendidas como cuecas no estendal no roupa, os braços quebrados e os corações esquartejados?
são questões que a mim, não me assistem. não as entendo. não as visualizo ou foco.
aqui, na minha casinha a beira mar plantada, debato-me com esta coisa de iniciar uma guerra e todas as burocracias que a envolve, e simplesmente não consigo, passa para lá do aceitavel, do imaginavel.
aqui está quentinho, sabem? acabei de comer uma maravilhosa refeição que vi o Jamie Oliver fazer na SicMulher, e banqueteei-me com uma torta de frutos silvestres logo a seguir. tive ainda o prazer desmesurado de me pespegar à janela a fumar um cigarro e para culminar, li 3 histórias ao meu filho e adormeci-o com festas no cabelo. no final ele ainda me disse: gosto muito de ti, mãe!, imaginem-me esta loucura!!
ando agora ás voltas com a minha mente tresloucada a pensar na minha guerra, aquela que eu queria tanto iniciar hoje. que me perseguiu os pensamentos todo o dia. que me revolveu as visceras, que tantos dilemas e dores de cabeça me causou, e ufa!, que canseira!
sim, é de facto fácil e simples pensar nisso, julgar que temos todas as justificações, todas as ideias feitas no lugar, todos os passos estrategicamente planeados.
o dificil...o cobarde...o pedante...o idiota e tão brutalmente ofensivo, é julgar que a podemos levar adiante com o nariz apontado para o céu, para todos aqueles que a sofreram na pele, que a rasgaram e arrancaram das suas próprias casas e familias, enquanto nós, os "Srs das Grandes Potencias Mundiais" estamos confortavelmente sentados no sofá a ver a Oprah e o Dr.Phil, o Biggest Loser e os 30 minutos com Jamie Oliver, com os nossos filhos, amigos e restante familia a dormir profundamente no quarto ou casa ao lado, e julgamo-nos em pleno direito a decidir quanto vale a vida humana.

"the answer my friend, is blowing in the wind..."

22 setembro 2011

Pessoas novas ou Uma no cravo e outra na ferradura

Detesto conhecer pessoas novas. Fica sempre uma centelha do que podia ser, do que poderá ser aquela pessoa, do que pode ter para me dar e o que terei eu para lhe oferecer a ela.
Na maioria das vezes acabo sempre por ficar com a memoria delas presa na mente e construo-lhes quase de modo instantâneo uma personalidade. Quero-as boas, honestas, simples e mágicas. Quero-as com cicatrizes e melancolias escondidas. Quero-as com histórias para contar, com amarguras e defeitos. Com vontade de mudar o mundo. Com mistérios e interesses. E detesto conhecê-las porque que na realidade as quero mais ou menos à minha imagem, quero que vejam o mundo com os mesmos olhos que eu. Que se comovam muito com os velhinhos, que gostem da solidão, que queiram escrutinar o que é isto de viver, de sentir, de querer. E a maioria das pessoas não quer nada disso, quer as suas próprias dores e comoções, sejam elas um filme lamechas ou um cachorro acabado de nascer.
Quero conhece-las, afundar-me no que têm dentro delas e entender como é ser assim, alguém que não eu, que não sabe o mesmo que eu, que sente as coisas de modo diferente, que ás tantas tem tanto mais que eu para oferecer, e eu quase sempre sem ser capaz de condensar dentro de mim o que tenho, e sem compreender o mistério das correntes que elas colocam nos seus próprios pulsos. Quero todas as pessoas livres, quero que compreendam que dentro das suas auto suficiências existe uma necessidade extrema de estar e ser noutro sitio, mais pacifico, mais bonito, mais nosso.
Acabo sempre a preocupar-me demais. A esperar demais. A sentar-me na sombra á espera de as ver chegar.
Detesto conhecer pessoas novas porque na maioria das vezes elas desiludem-me, não são nem um pouco daquilo que eu esperava que fossem e falam com pedras dentro da boca, com punhados de terra nas mãos e com jogos mesquinhos no cérebro, incapazes de ver para lá do óbvio, para lá do sexo ou do interesse em ter alguém com quem beber copos e dizer coisas que no fundo não lhes interessa três pepinos.
Procuro-lhes a essência com uma antecedência que não compreendem, acredito na bondade das suas palavras e no grau de sorrisos de que são capazes.
Não sei ou esqueci-me de como se joga ao gato e ao rato e cada vez compreendo menos a sua finalidade. Eu não preciso de ninguém que me rejeite continuamente para querer estar mais com ela, não preciso que me coloquem uma no cravo e outra na ferradura para as querer mais perto, não quero ter que esperar um tempo politicamente correcto para lhes ligar. Quero andar na rua e ver um homem sentado nas escadas a fazer caricaturas e achar que aquela pessoa em específico ia adorar ver aquilo e conversar com aquela pessoa, e saber que lhe posso dizer exactamente isso, com esta naturalidade, e mesma com que acordo e lavo os dentes, a mesma com que passo naquela rua e me lembro daquela pessoa.
Cada vez gosto menos de conhecer pessoas novas porque acabo genuinamente por gostar delas, e é cansativo gostar das pessoas. Não é que eu não goste, gosto muito, mas há que ver, gostar de alguém de um modo honesto dá trabalho, exige mais de nós do que aquilo que às vezes podemos dar, e depois elas ficam cá dentro algum tempo e não querem sair nem por mais uma, ou duas ou três.
E depois vem o cravo, e no dia seguinte a ferradura, e nunca sabemos se o que vem na semana a seguir é um ou outro e descortinar essas coisas provoca uma exaustão ridícula, daquelas que nos deixa a pensar, será mesmo assim tão bom conhecer pessoas novas, quando na maioria das vezes elas aparecem e depois esfumam-se no ar, deixando a ferradura pendurada na porta e um vaso de cravos pespegado á entrada da nossa vida?

17 setembro 2011

Alvaro de Campos

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.



E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;

Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,



Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,

Para fora da possiblidade do soco;

Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,

Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo,

Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu um enxovalho,

Nunca foi senão princípe - todos eles princípes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,

Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Quem contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?



Ó princípes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!

Onde há gente no mundo?

Então só eu que é vil e erróneo nesta terra?



Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."

14 setembro 2011

Pessoas que mordem

Eu já sabia que ia ficar assim, meia perdida, meia sem saber para que lado me hei-de virar, sem saber se o que sinto são borboletas ou morcegos e se o que vejo quando olho para ti é o antes ou o agora.
Eu já sabia e sempre hei-de saber, há-de ser sempre assim, esta duvida, esta incerteza, sem saber o que é isso que vejo jorrar dos teus olhos.
Aliás, sempre soube que existem pessoas que nos mordem, nunca pensei que tu viesses a ser uma delas porque sempre julguei que depois do antes a coisa ficava arrumada. E ficou.
Mas quando apareces assim, tão diferente mas em tantas coisas igual, fico desarmada e quero com força que o mundo gire ao contrário e que possa regressar àquelas coisas que eu não sei o que são mas garanto-te, mordem-me e mordem-me tanto que já não sei como estancar e fazer parar esta nausea, este vómito, esta tontura.
Hei-de saber o que é a viagem sem ti, até lá vou ter que me resignar com os dentes que vais deixando cravados na minha existencia.

12 setembro 2011

14 de Fevereiro ou O desespero de se ser bipolar

No dia 14 de Fevereiro ela acordou tranquila, tomou banho, vestiu-se. Preparou-se para mais um dia.
Enquanto tomava banho olhou para o corpo despido e quis rasgá-lo, apagá-lo, quebrá-lo. Quis uma raiva tremenda contra o que tinha dentro dele e que implorava para ser libertado. Quis um sitio para esconder a alma, protegê-la dos estilhaços da carne. Sabe que se sentou na banheira a sentir a agua a escaldar a queimar a pele, e sabia que já não tinha lágrimas. Quando o telefone tocou foi obrigada a regressar, a secar o corpo e vestir, havia vida lá fora e reclamavam-lhe a presença urgente num sítio qualquer onde não queria estar. Olhou-se longamente no espelho que a perscrutava, julgava, criticava, quis parti-lo, mas não havia tempo. Praticou o seu melhor sorriso, que nunca é o mais sincero, e quando julgou estar convenientemente preparada para representar o seu papel fechou a porta e chamou o elevador.
No elevador outro espelho seguiu-a, dizia-lhe coisas que não compreendia, apontava-lhe um dedo e chamava-a de fraca, de imprestável, de inútil, de feia, de tão totalmente e irreparavelmente incompleta. Respirou fundo outra vez, espetou furiosamente um dedo no olho para resgatar uma lágrima que queria saltar. Não sabia se vergonha, se medo, se desistência, se desespero, sabia que era normal… tão normal quanto qualquer episodio bipolar o possa ser para um bipolar. Por isso conteve-se, ensaiou e saiu, aquela viagem no elevador junto aos botões com números e Braille, com um espelho assustador como companhia, tinha sido longa, demasiado longa para percorrer os escassos 5 andares que a separavam da rua.
Almoçou devagar, divagou, falou sobre coisas que não lhe interessavam nem um pouco, foi uma boa actriz, tão boa quanto o havia sido a vida inteira, mas aquele peso sentia-o tornar-se insuportável. Toneladas de chumbo sobre as pernas, sobre as costas, e sentia-se arquear, definhar na luta constante que não queria ou podia continuar a alimentar. O corpo permanecia estranho, indigno ao toque, preso a qualquer coisa que não queria que fosse sua, mas que o era, sempre havia sido, e não podia fugir, correr. Fingir costumava resultar, mas hoje tudo era demasiado negro, não havia saída e a respiração começou a faltar. O peito pulava dentro, batia contra os ossos como um martelo, doía-a mais fundo, aplacava-lhe o discernimento.
No regresso a casa sabe que chegou a pedir ajuda, que aquilo tudo estava demasiado errado, que talvez falar ajudasse, que aquele dia podia ter um desfecho diferente, tinha que ter um desfecho diferente. A incompreensão, desconhecimento, ignorância ou medo foram incapazes de servir um bom propósito, afinal de contas… em boa verdade, como se lida com uma coisa destas, como ela, como aquele imbróglio de coisas feias, grotescas e monstruosas que lhe turvavam a vista e a impediam de continuar podia ter alguma ponta por onde pegar, por onde se começa quando o fim está demasiado próximo, quando o fim parece ser o único caminho a percorrer?
Quando regressou ao elevador e novamente o espelho, os números, os 5 andares que não passavam, fraca, inútil, pedante a respiração era uma coisa sumida, difícil, arrancada a ferros, o coração era uma bomba relógio, sentiu-se atirada contra a porta de casa, tentava continuar a inspirar e expirar mas havia qualquer coisa de tremendamente errada consigo, as lágrimas caíam em catadupa e por muito que os dedos percorressem o pequeno espaço em torno dos olhos, elas insistiam, queriam á força libertar-se, reclamar um direito que ela julgava que não tinham.
Por esta altura o pensamento era inconsequente, não existia, era um autómato pronto para fazer fosse o que fosse que acabasse com aquilo o mais rápido possível. Ela recordou os episódios anteriores e quis bater-se, espancar o corpo por lhe fazer novamente aquilo, por a condenar a uma realidade que ela rejeitava, que julgava que não merecia. Ou se calhar merecia, e era certo que os anos de tormentos se sucedessem nesta amálgama de dores e falta de ar que a quebrava e julgava.
Quis distrair-se, a música berrava no computador directamente para dentro dela, arrancava-lhe os movimentos, pisava-a. Milhares de imagens percorriam a mente e novamente o coração a bater, um tambor dentro. Arranhou o peito em busca daquele instrumento inútil que tinha ali e nada encontrava, só um murro atrás do outro, cada vez mais forte, destrutivo, implacável.
Sabe que foi ela quem chegou aos medicamentos, sabe que os tinha guardado propositadamente para uma situação destas, sabia onde estavam e á medida que os ia tirando dos blister de modo atabalhoado, furioso, com as lágrimas a comerem-lhe a visão mas já sem força ou vontade de as secar, engoliu tudo aquilo que lhe apareceu. Queria fazer aquilo parar, queria fazê-lo parar para sempre.
Foi no dia 14 de Fevereiro que deu entrada no hospital. Foi nesse dia que a mãe a encontrou já semi inconsciente ajoelhada no chão em frente ao computador, sem falar, sem mover um músculo que fosse. Soube que foi neste dia que a chamaram, que a levaram de carro até ao hospital, que lhe gritavam para que reagisse, mas ela já não estava ali. Fosse o que fosse que lhe dissessem ela não sabia, não ouvia, não entendia, não se recordava sequer.
Sabia uma única coisa, tinha conseguido que aquilo parasse, por uns momentos toda a merda se evaporou e em anos, toda a sua vida aliás, pôde descansar e antes de ser obrigada pelos médicos e pelo carvão activado a regressar, soube que a sua vida seria sempre assim, a luta entre estar e não estar, querer estar ou não, saber estar ou não, por momentos desistiu, não queria ter que lutar mais contra ela própria, contra o seu próprio corpo, contra as suas próprias emoções, queria descansar, queria dormir, queria por fim, um sitio bonito e tranquilo para morrer.
Regressou, lutou com seguranças do hospital, com um enfermeiro, arrancou os tubos que lhe iam da boca e nariz até ao estômago. Sentiu-se sozinha, perdida, traída. Regressou. Sim, ela regressou, mas com a certeza de que aquilo seria a sua vida (ou a falta dela) sempre. Regressou ou ficou lá para sempre?
É uma questão que há-de consumi-la todos os dias e quando o tambor volta a bater no peito, não há um minuto em que não se lhe venha á memoria a paz que aquele dia por fim lhe ofereceu, uma paz que nunca tinha sentido. Sim, um sitio bonito onde deixar a alma a repousar.

06 setembro 2011

o sexo é o caos

o sexo é o caos. na maioria das vezes é de uma violência extrema, que chega mesmo a roçar o sadomasoquismo, ainda que os intervenientes não se apercebam desse facto.
é uma vingança quase, uma marcha imperial, um redobrar de esforços para estilhaçar seja o que for que nos tenha feito o coração em cacos tão pequeninos que já não os conseguimos apanhar.
o sexo, por sexo, é animal, é grotesco. pode matar mais por dentro do que a bala de um canhão, é capaz de destruir, de arrebanhar, de sacrificar.
fica muitas vezes a sensação vazia de que se o fez porque tinhamos dentro uma raiva imensa, uma necessidade desumana de explodir, de libertar, de amordaçar o peito e escancarar desejos.
o sexo, quando é só isso mesmo e mais nada, pode curar, pode aumentarnos o ego e elevá-lo a uma altura que se aproxima dos deuses, pode dar-nos a sensação destemida de que o resto que se foda, que vale tudo, que nada vale, ou que tudo se perde quando se pensa descobrir. é um bicho papão, o sexo. um bicho papão que tem abraçado a si o joão pestana, uma vontade de ser mais, de querer mais, de prosseguir, de criar a ilusão de que tudo o resto são tangas e balelas dos filmes, musica e livros.
o sexo pode ser um factor de aumento ou de uma redução tão singular que muitas das vezes perdemos a memória de como efectivamente começou.
mas depois dá-se-lhe a volta e ele faz todo o sentido, afinal que pode ter mais sentido do que ser-se comummente animal?
mas depois há alturas em que as coisas se misturam, em que se deixa o discernimento para outro dia e os sorrisos começam a invadir a nossa cabeça assim, sem mais nem menos. e acabamos sempre com a mesma constatação que mata quase tanto como o sexo em si: é só sexo, então porque tenho estas coisas, palavras, rostos, memórias desconexas e vontades encriptadas a cirandar na minha cabeça? aii, mau maria!
e em boa verdade o final é sempre quase o mesmo, uma pessoa anda ali ás voltas com aquilo na mente durante uns tempos, depois as vontades vão passando e pensamos redescobrir as maravilhas vingadoras do sexo por sexo, julgamos que se arranjarmos em quem despejar este medo e esta confusão com o mesmo método, a coisa há-de ir ao sitio, e depois nada... depois com sorte (azar...sorte...azar...s...a...pim-pu-neta,pitá-pitá-pituxa...) acabamos com a cabeça embrulhada noutro corpo qualquer e juramos a pés juntos que o sexo é caos, é uma mentira, é uma vingança e continuamos estrada fora, com aquele olhar preso nos autocarros, nos cartazes da rua, nas pessoas que nos dizem "bom dia!".

sim... o sexo é o caos, o resto não passa de literatura.

22 agosto 2011

Desde quando? e, mais que isso...Até quando?

"Jogos não Didáticos

A ministra da educação anunciou computadores Magalhães para todos os alunos dos 1º e 2º anos para o próximo anos lectivo. Podiam ser Magalhães, Barbies ou bonecos Shrek.
O Magalhães é um brinquedo.
Um brinquedo que se avaria rapidamente e um brinquedo que já nos terá custado centenas de milhões de euros.
Um brinquedo que foi adquirido de forma mais do que duvidosa e cuja mais-valia nestes níveis de ensino é absolutamente questionável.
Se o Governo quer dar brinquedos, dê. Mas não lhes chame outra coisa."

Helena Matos in "Público" (27/Maio/2010)

"È coragem penalizar os mais fracos?

Ao decidir acabar com os apoios extraordinários aos desempregados, o Governo demonstrou como a austeridade pode acentuar as injustiças e as desigualdades.
Muitos perguntarão: era possivel fazer diferente? A resposta está longe de ser unívoca.
Ao introduzir estas e outras medidas, o Governo disse estar a agir com coragem e determinação. Não é uma frase necessariamente verdadeira.
Penalizando os desempregados, o Executivo Socialista não revela nem coragem nem determinação. Nem sequer fidelidade à sua matriz ideológica. Na prática, o Governo escolheu a via mais fácil. A austeridade é o preço a pagar por uma politica assente em ilusões que não viu a tempestade chegar. A consequência são os cortes precipitados, como este.
Os desempregados que perdem este apoio vão pagar o preço de uma cegueira politica pela qual não são responsáveis. Mais, ao negar estes apoios especiais, o Governo aceita trilhar um caminho hipócrita de estigmatizar pessoas que vivem um sentimento de exclusão.
Haverá fraudes? Sem dúvida, mas para isso existe a fiscalização. Como esta é ineficaz, penalizam-se todos por igual. E isto num contexto em que, como se sabe, as ofertas de trabalho disponiveis são em geral para empregos mal remunerados e exigindo apenas baixas qualificações.
Pede-se aos que já eram vitimas da situação económica que paguem agora os custos desta crise.
Coragem seria manter os apoios aos que estão em posição mais desfavorecida e continuar a apostar na qualificação. O preço dos cortes cegos e sem fim à vista como este, traduzir-se-á em mais instabilidade social.
È o preço de uma injustiça que a austeridade não pode justificar."

Editorial in "Público" (27/Maio/2010)

Sabem que mais...Vivam os sinceros, sem papas na lingua e os so-called Profetas da Desgraça.

Miguel

A ti, Miguel, por me lembrares todos os dias que a vida é um espetáculo bonito de se ver, de se tocar, saborear, mas principalmente de se viver.
Por me recordares incessantemente que é nas pequenas coisas, nas mais simples palavras, nos mais inóspitos momentos, nos lugares mais comuns, que se encontra um porto seguro, um sitio bonito para descansar.
Por me ajudares a compreender que não faz mal, que se pode deixar, volta e meia, a vida a repousar à sombra de um chaparro, porque quem nos ama há-de sempre ajudar-nos a reerguê-la de novo.
Porque a última peça a colocar-se em posição pode desmoronar e destruir muita coisa mas que no fundo dos teus olhos encontro sempre uma fonte inesgotável de força que me faz querer (e poder) reconstruir tudo.
Por me teres salvo.
Por dentro da palavra "mãe" achares espaço para todos os sorrisos do mundo.
Por me dares a mão quando tens medo do passo seguinte e por saberes, na inocência dos teus anos precoces, que quando tens medo eu também tenho e seres capaz de o reconhecer e embalar-me no teu olhar que me diz sempre que está tudo bem, que tudo há-de ficar bem, desde que nos tenhamos um ao outro.
Por me perdoares as falhas e me saberes apenas humana. Por teres a perfeita noção de que eu tenho, na realidade, muito mais a aprender contigo do que tu comigo.
Por seres a minha âncora, o meu impulsionador de sonhos, por seres a minha papoila de todos os dias, de todos os anos.
Pelo amor sem porquês ou barreiras.
Pelo medo de te perder que me sufoca e me oferece em todos os momentos um motivo para não desistir e lutar por ser uma pessoa melhor, um ser humano mais completo, apesar dos defeitos e erros.
Por existires. Por fazeres da vida a vida em si e por teres, dentro do teu coração que é já o maior que algum dia tive o prazer de conhecer, todos os sonhos condensados num só grito. Por seres um sobrevivente.
Por me amares, meu Miguel, meu filho, meu tudo.

30 julho 2011

Direito a votar

encontrar-te-ás sozinho à porta do delírio,

terás os cognomes da espera e o direito a votar,

comprarei um passe para visitar o museu das tuas obsessões,

saberás fazer-me voltar a horários fixos,

tirarei notas de rodapé com pormenores complicados e referências exaustivas,

farei esboços dos teus sorrisos,

apunhalar-me-ás com ideias universais e alegres

a caminho das coisas particulares e tristes,

sangrarei adjectivos ao modo superlativo, formas retóricas imprecativas

e estruturas paralelísticas,

deixarei as veias dos cárpatos abertas até encherem a tua piscina,

chamarás o segurança e dirás: isto não é hollywood, babe!,

aqui ninguém se suicida com uma overdose de felicidade,

não temos rottweilers a vigiar o sono das crias,

nem personal shopper para tratar as depressões,

terei o tamanho das minhas cicatrizes e as pestanas a fazer tim-tim-tim,

terás fome de mim,

prender-me-ás à cama como nos abraçámos às nossas ilusões,

subirei àquele comboio chamado desejo,

gritarás o meu nome de boca virada para a estação do prazer,

confundir-me-ás com as outras,

serei as outras nesse flutuar branco e veloz,

declinar-te-ei nas conjugações do passado,

desprezarás os volumes que imitam o contorno do meu corpo,

arrumarás num canto do mapa as ruas que levam a nós,

colocarás cartazes em cima dos destroços

enquanto um néon publicitário da boticario executará o papel do ocaso.

dois minutos antes de cair o pano, o director de som escolherá para o nosso fim

uma banda sonora na moda.


Golgona Anghel



...porque tem dias assim, em que as palavras dos outros reflectem tão bem aquilo que anda a deambular aqui dentro, que mais vale nos recostarmos, bebermos um fino bem sacado e nos deliciarmos com o incrivel que é essa coisa da empatia.

22 julho 2011

O Velho Indio

O velho indio estava a falar com o seu neto e contava-lhe:

"o Homem tem dentro dele dois lobos a lutar. Um é um lobo irritado, zangado, violento, egoísta e invejoso, o outro está cheio de amor, carinho, compreensão, respeito, honestidade e compaixão"

e o neto perguntou-lhe:

"Qual dos dois vai ganhar batalha, avô?"

e o velho indio respondeu:

"Aquele que o Homem alimentar."

21 julho 2011

Merda da televisão

há uma caixinha cinzenta cá em casa que nunca pára de funcionar. vou tentando pôr cobro à situação, mas depois a minha mãe já a dormir abre a olhaca e
-Eu estava a ver!
e eu consternada
-Mãe, já acabou há 1hora!
e depois carrego no botãozinho vermelho e vou para a cama, de computador atrás e cigarro enfiado no canto da boca.
acordo, invariavelmente, a meio da noite e aquela caixinha a debitar coisas que não entendo, ligada como se for magia e a minha mãe a dormir outra vez em frente áquela coisa e só me apetece partir aquilo tudo, deixar tudo em frangalhos.
a minha mãe gosta de ver novelas e os programas dos pasteleiros, sempre meia a olhar para aquilo para dentro, porque passados escassos minutos já se rendeu e os olhos fecham quase sem dar conta e depois mudo de canal e comovo-me muito com aqueles filmes antigos cheios de beijos e amores proibidos e olho para o lado, para a minha mãe adormecida e penso que dentro da sua cabeça uma história igualzinha e eu sempre a comover-me muito, a largar umas lágrimazitas com trago salgado e quero partir aquilo tudo outra vez.
que maneira baixa e pedante de controlar as gentes este mundo de celofane, que entretém de meia tigela aquelas pessoas todas a sofrerem tanto que mete dó e as suas vidas ali, escarrapachadinhas na caixa cinzenta para quem as quiser ver, a celebração da loucura, do sangue arrebanhado, das mentiras, do facilitismo com que se embrenham nas nossas cabeças e nos comovem tanto, tanto.
e a minha mãe a dormir em frente à merda da televisão quase a ver, quase a acreditar, quase a viver aquilo, quase a querer partir aquilo tudo também e a não ter forças. a nunca ter forças para destruir aqueles castelos todos no ar. a nunca ter forças para ir para a cama antes que o programa acabe. a nunca ter forças para carregar no botãozinho vermelho e ir para a cama, de alma na mão e a realidade pespegada no peito.
merda da televisão, sempre a prometer aquilo que não vai cumprir, sempre a entorpecer e anestesiar um pouco mais da nossa mente, sempre a falar de sofrimento e medo e amor e lágrimas, sem saber do que fala. nunca sabe do que fala, a merda da televisão.

O Escritor

Há 14 dias que deixaste de aparecer cá em casa.Que deixaste de telefonar e que as tuas meias deixaram de aparecer espalhadas pelo chão como se fossem um bocado de pó que o aspirador não apanhou.
Ninguém pergunta por ti, por isso não falo de ti, mas tem dias em que surges vindo do nada e me toldas as ideias até não restar mais nada, só a tua voz e aquele telefonema
-Lamentamos.o coração deixou simplesmente de bater.
e depois um barulho de fundo que parecia a sineta da escola a chamar a criançada toda para o almoço, e as correrias pelos corredores, e a comida escondida dentro do pão, e a professora sempre aos gritos a ameaçar que fazia queixa de nós ao director, e o director a compactuar connosco, a dar-nos chocolates e a dizer
-Vá, não se portem mal, olhem que para a próxima ficam mesmo de castigo!
e nunca ficávamos.
Juro que não te procuro. Não pesquiso o teu nome na Internet nem percorro a lista de contactos do telemóvel à procura do teu nome. Não revejo as tuas mensagens nem os teus e-mails. E não olho para as fotos porque tu já não existes e dentro desta constatação demolidora convenço-me de que, ainda que as olhasse, tu já lá não estarias. ter-te-ias evaporado e em teu lugar a banca da cozinha, uma árvore, a cadeira vazia de uma esplanada com o mar ao fundo.
-Casquinha, vamos à praia?
a tua voz a principiar e a assomar-se na porta e depois não acontece nada, nem Verão é. Está um frio que não se aguenta e fico com os pés gelados todas as noites. Procuro os teus, mas também os levaste, pode ser que morra com um resfriado e depois
-Lamentamos. o coração deixou simplesmente de bater.
o mistério do teu desaparecimento. Dava um bom titulo para um dos teus livros, talvez para aquele ultimo que andavas a escrever. ainda que nada tenha a ver com a tua morte, com sorte encontro por lá a resposta para o mistério do teu desaparecimento e depois consiga tirar esta coisa que tenho embrulhada no meu peito há 14 dias, quem sabe as tuas meias enroladinhas no chão, quem sabe as folhas que amassavas com fúria e largavas á volta da secretária onde custumavas passar horas, enfiado nos teus cadernos, nas canetas BIC (nunca te percebi a obcessão pelas canetas BIC, quando te ofereciam aquelas muito caras pelas festividades enfiava-las na gaveta e era um ar que se lhes dava).
Custa-me muito que nunca mais te vá ver a cruzar a rua, num extase louco só para me abraçares e a tua voz
-O teu corpo é um livro por escrever
e escrevias nos meus braços, nas minhas pernas,na minha barriga, na minha testa, com o meu baton vermelho que deixei junto ao teu corpo, dentro daquela caixa de madeira em que te enfiaram e que te leva todos os dias um pouco para mais longe de mim.
Sabes, hoje quando cheguei a casa despi-me na entrada e larguei as meias pelo chão, todas enroladinhas como tu fazias, vou deixá-las por lá à espera que o meu escritor regresse, se assome à porta e me diga
-Casquinha, vamos à praia!
ou que pegue nas meias e as ponha na tomba da roupa para lavar.
e eu, que não discuto, não levanto a voz, nem tão pouco perco as estribeiras a ouvir do outro lado
-Lamentamos.o coração deixou simplesmente de bater.
a gritar para o lado de lá
-Não!
e o barulho da sineta da escola a chamar a criançada para as aulas e elas, com muito pesar a resignarem-se, a aceitarem, a subirem a escadaria com a mochila demasiado pesada às costas, e no bolso um papel amarrotado
-És bonita!
e o meu sorriso de menina, tão feliz, tão certa de seres tu o homem da minha vida (e foste. e és.), tão iludida com a nossa eternidade, meu amigo,meu amor, meu escritor.

19 julho 2011

...Pai...

Quis magoar o meu pai muitas vezes, reclamar-lhe o olhar, a atenção, o carinho.
Houve uma altura, disso lembro-me perfeitamente, em que queria estragar-lhe as telas, agarrar nas bisnagas de tinta, espetá-las na paleta de madeira e sujar-lhe aquilo tudo, mas depois apareciam aquelas bolinhas de plástico às cores que ele punha no congelador e eu distraía-me com aquilo, mordia-as com a mesma raiva com que imaginava aquelas tintas todas espalhadas pelo chão até rebentarem e me encherem a boca com aquele liquido asqueroso, que sempre duvidei que fosse água.
E depois as memórias confundem-se-me todas dentro da cabeça e oiço-o dizer:
-Tricas...
e logo a seguir nada. Um nada muito grande, cheio de um silêncio que eu não compreendia e me assustava de morte.
A sua figura alta, esguia, sentado à beira da lareira de perna cruzada, como olhar preso em coisas que nunca fui capaz de deslindar e uma ausencia de som que me gelava os ossos.
Era sempre assim. Até ao jantar. Até aos fins de semana. Até quando eu julgava que o pio se ia soltar.
E esperava. Tentava imitar-lhe a pose muito direita e fazia um esforço mental demasiado grande para uma criança, a tentar pensar em coisas que me conferissem aquele ar inquestionavelmente artistico (bolas de sabão, livros cheios de bonecos, o rapaz mais giro da escola, a matemática a intimidar-me, a bela adormecida à espera do principe).
Tenho noção que talvez esteja a ser injusta. Que lhe esteja a reclamar uma ausência que não fosse assim tão implacável, mas na minha pequena existência aqueles silêncios todos eram simplesmente demasiado ensurdecedores.
Via-o ficar mais triste todos os dias enão conseguia entender porquê. A zangar-se mais, a falar menos (que era a pior maneira que ele tinha de se zangar), a ir cada vez menos vezes ao cinema e gradualmente a deixar de ir passar férias connosco. Ou era problema da praia ou excesso de trabalho, que para mim era o mesmo que dizer que era do cu ou era das calças, ou pior ainda, ou éramos nós ou a minha mãe.
Depois aconteceu o divórcio que eu, na minha pequenez dos 10 anos, já há muito tinha previsto e antecipado, e lembro-me de o meu irmão se ter zangado muito comigo quando eu disse a uma colega da escola que os meus pais, mais dia menos dia, se iam separar.
Ficou tudo muito solitário depois disso. A minha mãe chorava muito. O meu pai não sei, porque a sua dureza de artista sempre lhe toldou as manifestações emotivas.
Compreendi, aos 12 anos, que os anos de silêncio tinham avariado por tempo indeterminado a nossa relação e quando me diziam que eu era muito parecida com ele, eu ficava furiosa.
Foi então que o nosso fosso ficou tão profundo e tal modo irreversivelmente quebrado, que dura até hoje.
Esta coisa que eu não sei o que é, se é silêncio, se são tintas espalhadas pelo ar, se são bolas de sabão ou aquelas cores todas misturadas. Se é do cu ou das calças, ou pior ainda, se sou eu ou a minha mãe.
-"a guerra do dia-a-dia não destrói nada, tudo permanece intocável no sitio onde sabes poder sempre regressar"
Foste tu que me disseste isto, mas eu não acredito, ou se calhar acredito mas não sei como, ou talvez seja do cu ou das calças. E a tua voz
-Tricas...
e depois nada. E depois um silêncio muito grande, ensurdecedor, insuficiente, implacável.

18 julho 2011

Love will tear us apart... again (Versão I)

A velhice nada tem a ver com a idade. Nada tem a ver com as rugas que se vão acumulando no canto dos olhos, com as estrias a rasgarem a pele, com cabelos brancos. Não faz referência à idade dos filhos nem tão pouco se eles sequer existem.
A velhice é um estado da alma, é um contracenso da memória, é um acumular de emoções e sentimentos que eventualmente entram em combustão lenta até explodirem dentro do que temos cá dentro, e se encostarem ao nosso coração.
Não é a quantidade de amor que temos aos outros, ou a forma como lhes dizemos que realmente os amamos. É a quantidade de vezes que amamos que tornam a alma mais cansada, estoirada ao ponto de julgarmos que não aguenta mais, que assim , de facti, não há coração que resista.
São as colecções de desilusões que nos embatem com força e pensamos ter sido atingidos por um camião TIR. São as vezes que acreditamos tão piamente, que o destino se ri de nós.
É a amargura das horas em que achamos que já não resta mais nada e que agora é que se dá o salto para o lado de lá.
É a quantidade de vezes que nos agachamos no canto do quarto, muito quietos, silenciosos que nem ratos, e nos desfazemos em lágrimas. Por vezes, (e é aqui que mais se nos apertam as costelas) já nem sabemos bem se choramos por nós ou por eles, esses pedaços de coisas que vamos construindo no caminho e que no final nem coisas chegam a ser.
Parece inevitável chegar um momento em que, às arrecuas, nos lembramos dos rostos que se foram esfumando ao longo do tempo, e os mais antigos nos parecem certos, tão certos que já nem lhes lembramos o olhar, só a alma e os pedaços que roubámos deles e eles a nós.
É a batalha do cai e levanta que nos destrói. Chegasse mesmo a pensar ficar por lá caídos até que alguém nos venha resgatar da fossa, e voltamos a acreditar que quem nos tirar da fossa vai ser aquele tudo de um todo que queremos do nosso lado, para que não mais tenhamos que lutar, participar em jogos do gato e do rato (que dão pica mas cansam as visceras), para que não tenhamos que procurar em cada rosto alguém que nos sorria e nos dê os bons dias.
É mesmo isso que faz de nós velhos, criaturas ás tantas intratáveis que perderam a força para tudo, até mesmo para cair.
Somos velhos quando o encanto desaparece e julgamos que nada há a fazer acerca disso. Quando nos começamos a apaixonar novamente e já temos em piloto automático que, mais tarde ou mais cedo, aquilo vai ralo abaixo e ficamos de papel higiénico na mão a tapar o buraco com lágrimas e muco. Saímos à noite, bebemos até se nos entorpecer o cérebro e acompanhamos aos gritos Ian Curtis: LOVE WILL TEAR APART...AGAIN!
Depois enrolamo-nos com um gato pingado que tem tanta piada que até se nos amolece o coração e pensamos (totalmente embriagados): This love will not tear me apart again!
...Mas vai...nós é que ainda não sabemos!

13 julho 2011

No supermercado

Ás vezes quando vou ao supermercado, ponho-me a ver as pessoas à minha volta a existir. A existir sim, porque a maioria de nós, quando vai ao supermercado, limita-se a existir, afinal de contas quem é que tem paciência para viver por listas de compras, comparações de preços e talões de desconto?
Fico-lhes a adivinhar a vida, a olhar-lhes os olhos encovados e tristes, as corcundas da alma que transparecem através dos sacos pesados, cabelos no rosto e a lingua entre os dentes, como quem faz um esforço muito grande para ganhar a batalha das asas enroladas dos sacos, que teimam em não se colocarem a jeito para serem seguras por dois dedos a fazerem gancho.
São autómatos, criados para desempenharem uma função e que mais não podem pedir do que a promoção dos frescos ás quintas-feira.
Passeiam-se pelos corredores famintos de emoções que escasseiam nos dias, e é por isso que se entusiasmam muito quando uma tabuleta lhes diz que podem levar três pelo preço de dois ou quando o pack dos iogurtes oferecem um copo cheio de cores fluorescentes e um qualquer boneco lhes acena com um ar muito simpático quase como se dissesse: "Eu vou mudar a tua vida, a partir de hoje tudo vai ser diferente!".
As crianças olham para a secção das goluseimas e acreditam piamente que, se puderem convencer os pais cansados e sempre sem tempo para brincadeiras, a comprar-lhas, serão felizes eternamente, e o tal bonequinho diz-lhes a eles: "Vou ser teu amigo para sempre, nunca mais vais ter que brincar com os legos sozinho!".
As senhoras da caixa têm quase sempre um de dois ares. Ou é uma rapariga muito nova, que nos surpreende que tenha já atingido a maioridade, e que está ali para atingir um qualquer sonho que necessita de auxilio financeiro, ou é uma senhora de meia idade, que já demasiado curvada, se limitou a chegar à conclusão de que há sonhos que têm que ser esquecidos e delegados para um segundo plano que pode bem nem sequer existir.
Uma ida ao supermercado é quase como passar o dia na Segurança Social, mas em que tudo está silencioso (ou silenciado).
É a derradeira guerra do dia-a-dia.
Uma guerra que em boa verdade nunca sabemos como ganhar e que muito poucas vezes conseguimos construir uma estratégia suficientemente forte para que a possamos, efectivamente, ganhar.
Valham-nos os talões, os descontos, as promoções, e todas as outras complicações!

...em branco

Uma página em branco é uma coisa assustadora. Parece ridiculo, mas a infinidade de uma folha de papel em branco arrepia-me até aos ossos, aterroriza-me.
Desde pequena que me recordo de, com urgência, desatar aos rabiscos em qualque área em branco que se me fosse apresentada.
É dificil lidar com o terror de não saber o que fazer com o vazio, como preenchê-lo, dar-lhe um sentido. E a pressão é muito mais que muita.
Primeiro o coração começa a bater rápido, desompassadamente. A respiração torna-se ofegante, os olhos não param de percorrer o espaço e as mãos tremem levemente. O cérebro corre, bamboleia, cavalga...
E depois?
Depois nada, que uma folha em branco é uma figura austera, autoritária, merece respeito e nunca me julgo conseguir corresponder ás suas expectativas.
Eventualmente o sono chega e enche-se de pesadelos em que estou sozinha, sem saber o que fazer com uma folha de papel em branco.

Momentos contados pelo calendário do órgão que chora

No inicio é dificil, há que desfazer com muito cuidado os nós para que não se quebrem os fios. alimenta-se a esperança, demora-se mais tempo nas esquinas, perdemos as chaves de casa muitas vezes e há uma constante nuvem de algo indecifrável que nos envolve. torna tudo ambivalente. as contradições tornam-se uma constante. de manhã custa mais abrir os olhos porque sabemos que tudo estará intocável, parado, suspenso (e precisamos com urgência do milagre, daquele).
Depois começamos a pensar com mais clareza, ou na certeza disso empunhamos da espada de papel e queremos enfrentar o mundo inteiro de uma só vez (secretamente julgamo-nos pequenos, cansados, torcidos pelas horas...). queremos á força destruir todos os elos, queremos lá saber se rasgamos algum pedaço de alma crucial para o amanhã!, ninharias, o cérebro vive de muito menos e o coração é um eterno banana (se se quebra, para que precisamos dele? que uso proveitoso pode ter um órgão que chora?). Chamamos á razão a própria razão. temos a certeza absoluta e irrevogável de que estamos no caminho certo.
O mais fácil é apagar os elos. romper com sorrisos, reprimir desejos. parece simples recorrer ao caminho mais confortável, evitar estradas sinuosas. acima de tudo, é importante que ao longo do processo se vá olhando para o espelho como um estranho, com pena, de preferência.
Só no fim se pode voltar ao incio. só depois de matar o virus, ou de o adormecer (porque ele só morre se quiser), podemos, lentamente, regressar aos dias de sol, aos olhos reconheciveis, aos desejos, á compreensão de que tudo tem o seu tempo e a sua glória. só no fim de toda a parvoice da suposta auto-suficiencia (como se por magia nos tivessem injectado com extra-força!!), se podem voltar a tocar os corpos, para perceber que os olhares ainda se encontram mas que já não se espatam. para saber (e querer afirmá-lo) que ainda vai doer, que aquela musica e aquele sitio, que aquela comida e aquele cheiro, que aquele livro e aquela fotografia, ainda vão mexer com o que de mais sagrado pensamos ter, e que qualquer imprudência pode deitar tudo por terra, mas que no entanto, já se pode tocar no sitio onde se escondem os sentimentos sem queimar. e isso... (suspiro&sorriso) é delicioso.

é certo: não somos de vidro (ou manteiga dependendo da perspectiva) nem de ferro. somos de borracha, podemos partir, mas até lá, esticamos, contorcemos, encolhemos e dançamos sobre o nosso próprio corpo. levamo-nos ao extremo. amamos em demasia. somos de borracha.

Monstros

Como podemos salvar-nos do caos?
Da destruição constante e sucessiva a dar-se violentamente todos os minutos?
Como fugir do medo de nada valha assim tanto a pena?
Obrigarmo-nos a sentir a todo o custo, encher de melancolia o peito, não o deixar esvaziar, ficar a marinar o sofrimento até que as lágrimas cheguem finalmente. Incansáveis. Incontroláveis. Imparáveis. Não permanecer, inchar a alma até não restar outra opção senão rebentar.
Sempre me conheci assim, com a violência com que o meu filho rasgou o meu ventre.
Com a angústia por companhia vezes demais. Com demasiado amor pela deambular pelas ruas, a ouvir musica e a enterrar mais um pouco a estaca n alma. Obrigar-me a sofrer, a recordar sempre a tristeza como uma salvação, a depressão como única forma de permanecer sã, a amargura do dia-a-dia como único meio de ver a realidade acontecer.
Fumo cigarros como se a minha (in)sanidade dependesse disso. Não posso, consigo ou quero deixar de o fazer com pena de deixar adormecido o meu impulsionador de criação.
Temo que a estabilidade e a felicidade pousada no ombro me destrua e estou convencida de que se as aceitar, toda a minha capacidade de escrita se perca. Sou um pesadelo. Um monstro que não gosta de bolachas.
Vivo tudo e nada vivo. Sou o fim e o inicio em simultaneo.
Sou um cérebro hiperactivo com medo de deixar sair os monstros para fora de mim.

06 julho 2011

Cinema

há um mundo fora deste mundo. um mundo que não é meu, nem é teu, é inteiramente nosso. esse mundo existe, eu acredito.
um mundo onde fico sentada á sombra de uma árvore e o silencio impera. é para lá que vou agora mesmo, a cavalo, a voar, em cima de uma tartaruga ou agarrada ás escamas de um peixe.

vou, porque neste mundo de onde me sento em frente ao computador, neste preciso momento, só existe ruido, e esse ruido deixa-me louca.
a minha especie de loucura está á beira da extinção, é feita de outra matéria, de uma qualquer outra gosma que não é manufacturada, moldada, manipulada ou impingida. a minha loucura, a minha praia, a minha margem do rio, é aquela que se entranha nas visceras e deixa á mostra as entranhas esquartejadas, o vómito espalhado pela chão e socos no estômago para amansar a fera, demasiado exausta para seguir em frente, e pela impossibilidade de regressar atrás, se quer á força deixar ficar num sitio bonito onde ainda seja possivel descansar.



e esse sitio não é este. este...bem...este é apenas cinema.

04 julho 2011

Evasão

Tive uma amiga, há uns anos atrás, que desaparecia. De vez em quando, quando menos se esperava, ela simplesmente desaparecia. Ausentava-se de tudo, de todos.
No inicio preocupávamo-nos, abanávamo-la, chamávamo-la quase aos gritos, mas ela não cedia nem um milímetro.
Quando tinha a sensação de que estava a desaparecer ela respirava devagar, acendia um cigarro e no segundo seguinte já nós não a sentíamos. Ela era apenas uma imagem, um corpo semi-inanimado de sorriso pespegado no rosto, os olhos muito abertos e brilhantes e o corpo balançava suavemente, como se fosse qual fosse o lugar para onde havia escapado, estivesse a escutar musica e a gostar.
Um dia perguntei-lhe como era esse sítio e ela não foi capaz de me responder, limitou-se a abanar a cabeça e, com o mesmo sorriso de sempre, disse-me: não é longe, mas também não é perto, é assim como ir e não voltar, como se o mundo se partisse em várias pequenas partículas e todas elas fossem feitas da mais leve, embora nítida, sensação de pertença.
Ela era assim, enigmática, imaginativa. Respondia a tudo com esta quantidade de mistério indecifrável mas ao mesmo tempo tão e apenas sua. Era isso que a definia, estar e ser como ela própria imaginava o mundo. Essa capacidade de se evadir para esse local idílico, feito apenas do que ela própria sabia e sentia ser certo. Qualquer coisa digna de se ver.
Houve um dia em que ela não regressou. Estávamos num jardim e o sol brilhava alto. Estava quente e estávamos perto de um daqueles dias quase perfeitos em que sentimos poder recontar toda a nossa história, porque as oportunidades são infinitas.
Quando demos por ela já nem respirava, estava ali sentada, parada no tempo. O sorriso não se havia desvanecido e o vento começou a soprar ao de leve nos cabelos que lhe envolviam o rosto e de onde se descortinavam de forma intermitente os olhos abertos e como sempre, a brilhar, qual estrela estática no firmamento.
Foi impossível cerrar-lhe os olhos, no velório quiseram fechar-lhe o caixão para que não chocasse as pessoas. Foi um dos dias mais tristes da minha vida, vê-la partir.
Depois tudo se precipitou, as ruas ficaram mais curtas e estreitas, o frio era mais seco e intenso, as conversas tornaram-se forçadas e as noites serviam única e exclusivamente para nos embebedar-nos até à quinta casa.
Toda aquela energia quase cósmica, em que tudo se conjugava numa perfeição quase louca, mas tão real, sincera e honesta havia desaparecido. Eram tristes todos os dias.
Acabei por ficar obcecada pela ideia de descobrir o local da evasão da minha amiga, mas nada ajudava. As drogas deixavam-me simplesmente pedrada e o meu cérebro entorpecido, os sítios para onde viajava eram cheios de coisas estranhas, de pessoas disformes e da voz dela a dizer-me “como se todo o mundo se partisse em pequenas partículas”. Eventualmente acabei por me tornar na maior toxicodependente de que há memoria e com o tempo tudo se esfumou e acabei por perecer num beco escuro de uma qualquer rua deste mundo, sempre em busca do paraíso do olhar da minha amiga.
Esta historia não tem qualquer fundamente ou objectivo, é só e apenas uma historia acerca de alguém que me ensinou que podemos condensar tantos mundos e tantas perfeições (ou imagens que criamos delas) dentro de nós que acabamos por nos perder dentro delas. Elas tornam-se a nossa própria essência.
Eu não sei que mundo era esse para o qual a minha amiga se evadia, se calhar, e o mais provável, era que ela simplesmente fosse diferente de todos nós, que talvez devesse ter sido medicada, que alguém, nalgum dia, talvez a devesse ter obrigado a sair daquele transe e a regressar para junto de nós, que éramos reais e a apreciávamos tanto. Mas para que serviria isso, toda essa violência contra a sua própria forma de ser feliz? Estaríamos a criar um monstro ou alguém eternamente deprimido caso a tivéssemos puxado desse sonho que se tornou a sua vida? Nunca o saberemos, mas a minha convicção é que o estaríamos por certo a fazer.
Talvez, e só talvez, se eu tivesse buscado a minha própria forma de escapar, o meu paraíso, o meu local de encontro, pudesse ter encontrado um jardim cheio de flores, sol a queimar a pele e uma cascata ao fundo, com violinos sempre a tocar ao longe, e não uma rua fria e suja, onde quis á força tornar meu o paraíso de outra pessoa e acabei por encontrar uma agulha espetada no braço, espuma a sair-me da boca e a voz de um homem a dizer: então boneca? Vamos brincar?, enquanto eu ainda tive força para abrir os olhos e ver-lhe a língua, qual labareda, a percorrer-lhe os lábios e os dentes podres.
Talvez eu também pudesse ter morrido com um sorriso nos lábios e os olhos tão abertos e brilhantes que podiam certamente engolir o mundo inteiro de uma única assentada.