27 junho 2011

Uma questão de identidade

Às vezes perdemos tudo.
Temos uma tendência, indiscutivelmente humana para destruir tudo, com o mesmo sem à vontade com que construímos esse mesmo tudo.
(Bem, mas esta é outra tertúlia, para outro tempo. Para um dia em que esteja Sol, em que possamos reunir toda a nossa frágil humanidade e chorar sobre a destruição maciça a que nos permitimos, mesmo quando tudo brilha e é aparentemente feliz)

Perdemos canetas, chaves, guarda-chuvas. Preferencialmente, alicia-nos perder coisas pequenas, como isqueiros, pilhas, batons para o cieiro. Perdemos toda uma parafernália de objectos com uma indiferença notável, digna de audiência em lotação esgotada.
O drama, o verdadeiro drama, a cena em que toda a plateia silencia e, não obstante os próximos minutos se perde em auto-suficiência o quanto baste para se permitir à quase ausência de respiração, revela-se quando perdemos, ou preferimos esquecer-nos de encontrar outro tipo de pertences, bem mais obscuros.
Verifica-se uma certa propensão a hierarquizar todo e qualquer tema. Obrigamo-nos a respeitar determinadas regras e enfurecemo-nos quando alguém as contorna.
(Não só quando é contornada, mas principalmente quando sabemos que alguém o ousou e não foi apanhado.)

Esperamos que as regras sejam desrespeitadas mas que sejam sempre colhidos na rede os profanadores. Como se a sanidade mundial estivesse em causa, não descansamos enquanto todos eles não estejam estendidos em praça pública, onde se possa ver o sangue arrebanhado dos criminosos.
Não gostamos de perder malas, carteiras, telemóveis. Martirizamo-nos como se um pedaço muito importante de nós tivesse de repente dado sumiço. Podemos perder tudo, até pessoas estamos dispostos a perder (afinal de contas é o preço da existência, não é?) , só não suportamos perder aquilo que nos identifica, que nos confere um número (para estar tudo muito bem organizadinho) ou um determinado local que, num egoísmo fatal julgamos ser nosso, por direito, no mundo.
Queremos ser sempre tão únicos, sempre e apenas iguais a nós próprios, sempre auto-suficientes, sempre cientes e profundos conhecedores da nossa existência única, inconfundível e intransmissível. A identidade que alguém nos conferiu sem pedir permissão, direito a objecção ou opinião. A identidade que tivermos enquanto quisermos (julgamos nós) , enquanto a merecermos (julgam eles) , enquanto formos dignos dela (julgamos todos).
Rejeitamo-nos terminantemente a aceitar que alguém tenha a distinta lata de contornar tamanha dádiva apenas pelo prazer de questionar, opinar, julgar saber mais que os outros.
Quem ousa ser infeliz nesta sociedade, que tão amavelmente nos acolheu?
Afronta! Cria e educa o monstro que concebeste!
“Temos muitas frases dentro da cabeça, ideias arrumadas, catálogos de vidas perfeitas. Perdemos principalmente as pequenas esperanças, a poeira dos livros guardados na estante, o fim de tarde com sabor a Verão, as sombras dos caminhos…
Perdoem-me, se decido não escolher a vida pela ementa.”

1 comentário:

  1. Concordo com tudo, e acho que também não gostamos de perder o trem, principalmente o da vida! Parabéns.

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