04 julho 2011

Evasão

Tive uma amiga, há uns anos atrás, que desaparecia. De vez em quando, quando menos se esperava, ela simplesmente desaparecia. Ausentava-se de tudo, de todos.
No inicio preocupávamo-nos, abanávamo-la, chamávamo-la quase aos gritos, mas ela não cedia nem um milímetro.
Quando tinha a sensação de que estava a desaparecer ela respirava devagar, acendia um cigarro e no segundo seguinte já nós não a sentíamos. Ela era apenas uma imagem, um corpo semi-inanimado de sorriso pespegado no rosto, os olhos muito abertos e brilhantes e o corpo balançava suavemente, como se fosse qual fosse o lugar para onde havia escapado, estivesse a escutar musica e a gostar.
Um dia perguntei-lhe como era esse sítio e ela não foi capaz de me responder, limitou-se a abanar a cabeça e, com o mesmo sorriso de sempre, disse-me: não é longe, mas também não é perto, é assim como ir e não voltar, como se o mundo se partisse em várias pequenas partículas e todas elas fossem feitas da mais leve, embora nítida, sensação de pertença.
Ela era assim, enigmática, imaginativa. Respondia a tudo com esta quantidade de mistério indecifrável mas ao mesmo tempo tão e apenas sua. Era isso que a definia, estar e ser como ela própria imaginava o mundo. Essa capacidade de se evadir para esse local idílico, feito apenas do que ela própria sabia e sentia ser certo. Qualquer coisa digna de se ver.
Houve um dia em que ela não regressou. Estávamos num jardim e o sol brilhava alto. Estava quente e estávamos perto de um daqueles dias quase perfeitos em que sentimos poder recontar toda a nossa história, porque as oportunidades são infinitas.
Quando demos por ela já nem respirava, estava ali sentada, parada no tempo. O sorriso não se havia desvanecido e o vento começou a soprar ao de leve nos cabelos que lhe envolviam o rosto e de onde se descortinavam de forma intermitente os olhos abertos e como sempre, a brilhar, qual estrela estática no firmamento.
Foi impossível cerrar-lhe os olhos, no velório quiseram fechar-lhe o caixão para que não chocasse as pessoas. Foi um dos dias mais tristes da minha vida, vê-la partir.
Depois tudo se precipitou, as ruas ficaram mais curtas e estreitas, o frio era mais seco e intenso, as conversas tornaram-se forçadas e as noites serviam única e exclusivamente para nos embebedar-nos até à quinta casa.
Toda aquela energia quase cósmica, em que tudo se conjugava numa perfeição quase louca, mas tão real, sincera e honesta havia desaparecido. Eram tristes todos os dias.
Acabei por ficar obcecada pela ideia de descobrir o local da evasão da minha amiga, mas nada ajudava. As drogas deixavam-me simplesmente pedrada e o meu cérebro entorpecido, os sítios para onde viajava eram cheios de coisas estranhas, de pessoas disformes e da voz dela a dizer-me “como se todo o mundo se partisse em pequenas partículas”. Eventualmente acabei por me tornar na maior toxicodependente de que há memoria e com o tempo tudo se esfumou e acabei por perecer num beco escuro de uma qualquer rua deste mundo, sempre em busca do paraíso do olhar da minha amiga.
Esta historia não tem qualquer fundamente ou objectivo, é só e apenas uma historia acerca de alguém que me ensinou que podemos condensar tantos mundos e tantas perfeições (ou imagens que criamos delas) dentro de nós que acabamos por nos perder dentro delas. Elas tornam-se a nossa própria essência.
Eu não sei que mundo era esse para o qual a minha amiga se evadia, se calhar, e o mais provável, era que ela simplesmente fosse diferente de todos nós, que talvez devesse ter sido medicada, que alguém, nalgum dia, talvez a devesse ter obrigado a sair daquele transe e a regressar para junto de nós, que éramos reais e a apreciávamos tanto. Mas para que serviria isso, toda essa violência contra a sua própria forma de ser feliz? Estaríamos a criar um monstro ou alguém eternamente deprimido caso a tivéssemos puxado desse sonho que se tornou a sua vida? Nunca o saberemos, mas a minha convicção é que o estaríamos por certo a fazer.
Talvez, e só talvez, se eu tivesse buscado a minha própria forma de escapar, o meu paraíso, o meu local de encontro, pudesse ter encontrado um jardim cheio de flores, sol a queimar a pele e uma cascata ao fundo, com violinos sempre a tocar ao longe, e não uma rua fria e suja, onde quis á força tornar meu o paraíso de outra pessoa e acabei por encontrar uma agulha espetada no braço, espuma a sair-me da boca e a voz de um homem a dizer: então boneca? Vamos brincar?, enquanto eu ainda tive força para abrir os olhos e ver-lhe a língua, qual labareda, a percorrer-lhe os lábios e os dentes podres.
Talvez eu também pudesse ter morrido com um sorriso nos lábios e os olhos tão abertos e brilhantes que podiam certamente engolir o mundo inteiro de uma única assentada.

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