19 julho 2011

...Pai...

Quis magoar o meu pai muitas vezes, reclamar-lhe o olhar, a atenção, o carinho.
Houve uma altura, disso lembro-me perfeitamente, em que queria estragar-lhe as telas, agarrar nas bisnagas de tinta, espetá-las na paleta de madeira e sujar-lhe aquilo tudo, mas depois apareciam aquelas bolinhas de plástico às cores que ele punha no congelador e eu distraía-me com aquilo, mordia-as com a mesma raiva com que imaginava aquelas tintas todas espalhadas pelo chão até rebentarem e me encherem a boca com aquele liquido asqueroso, que sempre duvidei que fosse água.
E depois as memórias confundem-se-me todas dentro da cabeça e oiço-o dizer:
-Tricas...
e logo a seguir nada. Um nada muito grande, cheio de um silêncio que eu não compreendia e me assustava de morte.
A sua figura alta, esguia, sentado à beira da lareira de perna cruzada, como olhar preso em coisas que nunca fui capaz de deslindar e uma ausencia de som que me gelava os ossos.
Era sempre assim. Até ao jantar. Até aos fins de semana. Até quando eu julgava que o pio se ia soltar.
E esperava. Tentava imitar-lhe a pose muito direita e fazia um esforço mental demasiado grande para uma criança, a tentar pensar em coisas que me conferissem aquele ar inquestionavelmente artistico (bolas de sabão, livros cheios de bonecos, o rapaz mais giro da escola, a matemática a intimidar-me, a bela adormecida à espera do principe).
Tenho noção que talvez esteja a ser injusta. Que lhe esteja a reclamar uma ausência que não fosse assim tão implacável, mas na minha pequena existência aqueles silêncios todos eram simplesmente demasiado ensurdecedores.
Via-o ficar mais triste todos os dias enão conseguia entender porquê. A zangar-se mais, a falar menos (que era a pior maneira que ele tinha de se zangar), a ir cada vez menos vezes ao cinema e gradualmente a deixar de ir passar férias connosco. Ou era problema da praia ou excesso de trabalho, que para mim era o mesmo que dizer que era do cu ou era das calças, ou pior ainda, ou éramos nós ou a minha mãe.
Depois aconteceu o divórcio que eu, na minha pequenez dos 10 anos, já há muito tinha previsto e antecipado, e lembro-me de o meu irmão se ter zangado muito comigo quando eu disse a uma colega da escola que os meus pais, mais dia menos dia, se iam separar.
Ficou tudo muito solitário depois disso. A minha mãe chorava muito. O meu pai não sei, porque a sua dureza de artista sempre lhe toldou as manifestações emotivas.
Compreendi, aos 12 anos, que os anos de silêncio tinham avariado por tempo indeterminado a nossa relação e quando me diziam que eu era muito parecida com ele, eu ficava furiosa.
Foi então que o nosso fosso ficou tão profundo e tal modo irreversivelmente quebrado, que dura até hoje.
Esta coisa que eu não sei o que é, se é silêncio, se são tintas espalhadas pelo ar, se são bolas de sabão ou aquelas cores todas misturadas. Se é do cu ou das calças, ou pior ainda, se sou eu ou a minha mãe.
-"a guerra do dia-a-dia não destrói nada, tudo permanece intocável no sitio onde sabes poder sempre regressar"
Foste tu que me disseste isto, mas eu não acredito, ou se calhar acredito mas não sei como, ou talvez seja do cu ou das calças. E a tua voz
-Tricas...
e depois nada. E depois um silêncio muito grande, ensurdecedor, insuficiente, implacável.

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