28 outubro 2011

um dos dias mais tristes da minha vida

"o dia em que o meu avô morrer vai ser um dos dias mais tristes da minha vida", dizia eu sem nunca acreditar realmente que ele iria um dia, efectivamente, morrer.

Foi há quase um ano e há quase um ano que conto os meses a partir desse quase um ano, como se a vida, como que por magia, tivesse começado nesse dia.
Desde há um ano que os meses, as semanas e as horas têm o peso da morte, sempre o peso da morte e da ausencia, sempre a secreta esperança de que há um ano não tenha acontecido. na verdade foi há quase um ano como poderia ter sido ontem ou há 5 anos, o vazio que ficou é igualmente sem fundo, irremediavel e inacreditavel.
- Bom dia gilette azul!
a voz dele a cantar à porta do quarto para nos acordar para ir para a praia. quando era miuda tinha sempre muito sono, um sono terrivel. só acordava realmente após a segunda chamada e o sono era substituido pelo cheiro das torradas acabadas de fazer e pela excitação de ir fazer pães-de-açucar, jogar às raquetes e nadar até à bóia, sabê-lo sempre ali, forte, confiante, seguro, quase indestrutivel!
depois, com o tempo e as manias de adolescente, a voz dele era quase um incomodo, quase um despertador que me irritava, a ressaca a latejar na cabeça e o meu corpo a recusar-se, a não querer saber dos pães-de-açucar ou das raquetes, a não ter forças para nadar até à bóia, a vê-lo sempre como um porto seguro, onde poderia regressar sempre que quisesse.
(não imaginava ainda como me enganava, como nos enganamos sempre tanto quando somos adolescentes e tomamos o mundo por garantido)
juro, se ele hoje
- Bom dia gillete azul!
eu me comovia tanto, que me comovia até às mais profundas lágrimas. tenho a certeza, se ele voltar, eu volto a adorar pães-de-açucar. juro que nado com ele até á bóia e seguro-lhe na mão com tanta força que há quase um ano não existiu, prometo que não aconteceu, e perdoo-lhe, a serio que o perdoo pela brincadeira de mau gosto (onde é que já se viu desaparecer assim durante quase um ano, sem dar noticias, sem o cheiro das torradas, sem a nitida sensação de segurança inabalável).
foi há quase um ano, e durante esse ano aconteceu uma vida inteira: a empresa insolveu-se, a avó ficou irremediavelmente triste, a minha irmã ficou noiva, o meu pai foi e voltou de Angola, eu tentei suicidar-me, editei um livro e apaixonei-me. e no entanto, foi tudo há quase um ano, há meses... tudo, no dia de hoje é contado pelos meses que vão pesando mais e mais no misterio do desaparecimento do meu avô, e podia ter sido ontem ou há 5 anos que queria dizer exactamente a mesma coisa.
se voltares, avô, prometo que te deixo orgulhoso de mim, prometo que jogo contigo à bola.
é que sabes, o meu filho sabe de cor a história da tua morte e sempre que a conta fica tudo suspenso, na secreta esperança de te ver chegar, porque convenhamos, uma criança quando conta uma história ela não pode nunca ser ter sido real, é sempre um conto de fadas, uma mentira, uma negação.

"o dia em que o meu avô morrer vai ser um dos dias mais tristes da minha vida", e foi, e é. e daqui a quase um ano continuará a ser.
se não voltares, avô, juro que há quase um ano será um dos dias mais tristes da minha vida.

22 outubro 2011

Quanta vida queres?

Quanta vida queres?
Uma que dure muitos anos...poucos?
Uma que seja intensa, cheia de medos, incertezas, trambolhões no empedrado... sorrisos pendurados no estendal da roupa, o toque que arrepia de quem se ama, o turbilhão que é sentir-se tanto que se julga que o coração há-de martelar-nos no peito até que saia fora, até que o seguremos com as proprias mãos, até que sangre varanda abaixo e deixe finalmente de bater?
[ou]
Uma tranquila, sem grandes sobressaltos, a escolher amar aquilo que é bom para nós e a sabermos perfeitamente que isso nunca se assemelhará, nem de perto nem de longe, a amar verdadeiramente, mas que ainda assim, a felicidade de remissa nos deixa tão mais seguros, estáveis, sossegados?

Quanta vida queres?

Nem todos vão compreender,aceitar, nem tão pouco gostar, mas perdendo aquilo que nos define, aquilo que nos permite fazer essa distinção, perdemos o direito à escolha mais importante de toda a nossa vida:

Afinal de contas, quanta é a vida que queremos?

20 outubro 2011

Cerebro hiperactivo ou O vazio do pensamento

passam-se as escadas, as entradas dos prédios, os cafés crivados de gente, as salas de cinema a prometerem finais felizes. passam-se as casas, os pinhais, a Dona Maria a vender flores na esquina. passam-se os caracóis a dormir preguiçosamente ao sol, as rosas vermelhas, foge-se das abelhas e dos lagartos, passam-se as estradas e os carros, os jardins.
acena-se ao Sr. Joaquim do talho, à Clarinha a brincar ao pião, ao João e ao Pedro a trocar cromos, ao Carlos da mercearia, à Sra da papelaria de quem nunca soubemos o nome (só o sorriso).
Cai a noite do lado de lá cidade, gosta-se do rio, quieto, quase parado, quase a esquecer que dentro taínhas, latas de sumo, estacas, pacotes de Matutano e preservativos. gosta-se do rio á superficie, julgam-se-lhe peixes coloridos, pedras macias, algas entrelaçadas num jogo de verdes de perder de vista.
caminha-se na margem, pisa-se a calçada [agora uma carica que faz "crsh" e depois uma beata que não faz barulho nenhum], pensa-se pouco, quase nada. Gosta-se do branco tão branco dentro da cabeça, detesta-se o burburinho dos carros e das buzinas.
Na madrugada quer-se um bar cheio de musica e corpos a dançar. Quer-se um fino bem sacado para ajudar à secura. Quer-se a musica alta, muito mais alta, tão mais alta. Quer-se esquecer, embriagar, confundir, julgar que não e logo a seguir que sim. Quer-se a gargalhada lá ao fundo, quer-se descobrir o rosto da gargalhada, quer-se muito, mas ele foge. acaba-se a gargalhada, acaba-se o fino.
acaba-se outro fino e outro que tal, encontra-se a gargalhada caída no chão. come-se a gargalhada e depois disso mais nada, que o cerebro já está cansado de não pensar em nada. que o cerebro está cansado de passar, de fugir, de acenar, de julgar, de querer e de acabar. depois disso fica a gargalhada pendurada nos lábios, a gargalhada roubada, a gargalhada caída no chão.

19 outubro 2011

Enquanto a cafeteira derrama o leite

Vivia num daqueles apartamentos pequeninos, mas acolhedores de Alfama. Tinha vários canteiros de flores no varadim e vasos espalhados por toda a cozinha onde, com orgulho, plantava ervas aromáticas.
Profissão não a tinha, tinha um trabalho que lhe preenchia quase todas as horas, menos aquelas que passava no jardim junto à Feira da Ladra, onde se deliciava com as reliquias que os vendedores, sempre simpáticos, lhe mostravam, quais tesouros. Dizia recorrentemente que não tinha profissão porque dela não advinham grandes lucros financeiros, em oposição a ter o trabalho de expelir a alma todos os dias para folhas de papel que lhe valiam o suficiente para se sentir quase feliz, quase realizada, quase despida, quase, sempre quase a ficar vazia de emoções.
Naquela manhã, como em todas as outras, acordou e, enquanto o leite aquecia na cafeteira, sentou-se na mesa de madeira e ficou a admirar-lhe os veios entrelaçados com o fumo do cigarro que fazia questão de fumar em jejum (sempre tinha gostado da tontura matinal que provocava a nicotina quando lhe entrava no sistema).
Teve tempo para pensar em tudo, pensou que devia deixar de fumar, que devia de deixar de beber café. Que devia fazer uma visita à avó no lar com Alzheimer, que não a reconheceria. Que devia ligar à mãe e perguntar-lhe como estavam os cães, à irmã para saber do seu emprego precário e do casamento à porta que a entediava de morte. Devia fazer um telefonema ao irmão, saber-lhe as novidades da viagem que havia começado há um ano na Tailandia e que se tinha prolongado por tempo indefinido. Devia ir ao cemitério, deixar uma flor na campa do pai e vir-se embora muito rápido antes que as lágrimas lhe devorassem os olhos. Pensou ainda que devia ter mais cuidado com a alimentação, que devia comer sempre três refeições por dia e que antes de dormir devia levar para a mesinha de cabeceira um copo de leite.
O som da cafeteira a chiar deixou-lhe os pensamentos em suspenso. Leite por tudo quanto era sitio, a escorrer pelo fogão e a deixar no ar aquele cheiro horrivel. Enquanto se deixou ficar a olhar para aquela bagunça toda a olhá-la com ar ameaçador, permitiu-se voltar á enumeração de todas as coisas que devia fazer.
Devia comprar uma televisão, uma qualquer, desde que tivesse 70 canais e acesso ao canal de que tinha ouvido falar, que passava 24 sobre 24 horas o ultimo reality show que andava nas bocas de toda a gente. Devia comprar uns sapatos altos, muito altos, daqueles que deixam as mulheres incrivelmente elegantes mas tão dolorosamente magoadas e cheias de gretas nos pés. Devia ir a um Centro Comercial e ficar a passear entre montras, mostrar-me maravilhada com os saldos e sentir-se tentada a gastar muito dinheiro numa única saia. Devia aceitar o pedido de casamento do Diogo, vestir-se de branco e jurar em frente a um deus em quem não acredita, que aquela é a pessoa com quem quer passar o resto da sua vida, na pobreza e na riqueza, na saude e na doença. Devia deixar de escrever, ter uma vida melhor, quem sabe ser até uma pessoa melhor se o fizesse, gostar mais da vida que tinha, se deixasse de escrever.
Viu-se portanto entre a espada e a parede. Limpou o leite derramado e tomou a maior decisão da sua vida.
Amarrou um cachecol ao candeeiro da sala e saltou em direcção à carpete, onde os seus pés não voltaram a tocar.
No mesmo dia muitas pessoas receberam a mesma mensagem telefónica deixada no atendedor de chamadas, mãe, irmã, irmão, Diogo e até o coveiro a pegarem no telefone e junto ao ouvido, baixinho:
"è isto que eu tenho a dizer em relação àquilo em que vocês me querem transformar"

17 outubro 2011

cada vez tenho mais medo das crianças

cada vez tenho mais medo das crianças.
são criaturas sábias mas sem autonomia. roubam-nos todas as comoções, arrancam de nós aquilo que temos de melhor, têm vozes de anjos e convencem-nos das maiores barbaridades de que a nossa civilização se lembrou de inventar.
olham-nos com aqueles olhos pequeninos e sabem exactamente aquilo em que pensamos retirando tudo o que é acessório e deixando à mostra só aquilo que realmente importa. medo, cansaço, perdição, desilusão. sabem-nos tudinho, as crianças e nós nunca sabemos nada delas.
são perigosas, fazem-nos querer ter mais e deixam-nos à beira de um ataque de panico por sabermos que elas merecem tão mais do que aquilo que lhes podemos oferecer.
é um crime grande, as crianças. são as maiores criminosas, as crianças, porque matam, roubam, e cometem todos os crimes da alma num unico olhar, só através do toque são capazes de nos virar o mundo de pantanas e de nos fazer chorar muito.
logo nós, que nunca choramos. logo nós, que nunca amamos. logo nós, que nunca nos apaixonamos.
é facil...basta existir uma criança por perto que nos amoleça o coração para que tudo aquilo que pensámos ter por certo seja uma mentira redobrada.
logo nós, que nos julgavamos impenetráveis.
cada vez tenho mais medo das crianças porque as amo. e o amor é uma coisa da qual se tem medo.

14 outubro 2011

deixa que te diga, antes que as luzes se apaguem e caiam as cortinas...

és egocentrico, pseudo-intelectual, egoista e julgas que tens o rei na barriga.
embrulhas o que dizes em coisas que não fazem sentido algum para ninguém a não ser para ti proprio. pensas que vives do que amas, esqueceste que já não é possivel viver-se do que ama. ama-se aquilo do que se vive e com alguma sorte, as coincidencias ditam que os dois conceitos se encontrem algures a meio caminho.
sim, vou deixar que o que sinto cresça livremente dentro de mim, e tu nunca saberás que isto é sobre ti, e que isto que sinto não é, nem de perto nem de longe alguma coisa que se assemelhe, nem levemente, a ódio.

12 outubro 2011

Actores ou Os saltimbancos da alma

Se existe uma raça que eu não suporto, esta tem que pertencer à raça dos actores.
Sempre prontos, sempre adoráveis, sorridentes, amorosos e cultos. Sempre tão bem informados de tudo que até mete medo.
[e o brilho nos olhos dos actores...onde é que já se viu ter-se aquele brilho nos olhos?]
Detesto-os. Sempre que a minha vida, acidentalmente, se cruzou com um que ficou tudo virado do avesso. Mudei sempre de opinião. Passei do extremo de lhes detestar as rugas do rosto, até à loucura de lhes adorar os movimentos, a forma como são capazes de transformar aquilo que não está, numa coisa banal tão unicamente possivel, tão incontestavelmente palpavel.
Quando os actores sentem alguma coisa ela parece que lhes é cuspida pelos olhos, que os envolve uma aurea de infinitas possibilidades e os sonhos mortos ressuscitam [não miraculosamente, qual banha da cobra de 3 tostões] como se não fizesse sentido que fosse de outra forma.
Têm a confiança de quem há muito aprendeu a dominar a arte da ludibriação e rejubilam com as infinitas formas e modos com que conseguem convencer alguém de que tudo aquilo que era certo, não, é uma erro. Crasso.
Os actores obrigam-nos a querer saber mais, a descobrir a arte de encorporar toda uma outra vida e personalidade num piscar de olhos.
[e vêem.vêem como ninguém]
Quando olham para nós, quero dizer, quando olham directamente para nós, é como se nos despissem e nos perscrutassem a alma. Descobrem-nos todos os podres, arrasam-nos.
São seres pacientes, cheios da manha de uma criança de 5 anos. São seres perigosos porque uma vez que entrem
[qual furacão]
na nossa vida, não desaparecem até que tenham arrebanhado de nós todas as verdades e certezas.
Quando um actor diz:
hoje estas muito bonita!
pode querer dizer todas essas palavras, tecê-las letra por letra, e ainda assim juntar-lhes tantas outras que eles acham que nuncaa iremos saber quais são.
Roubam-nos as verdades mas não permitem que as suas sejam roubadas.
São criaturas às tantas egoístas. Criaturas vampiras. Julgam conhecer-nos e a verdade é que o mais provavel é que conheçam.
È mais provavel, aliás, que nos conheçam desde o primeiro momento em que nos puseram a vista em cima e nós
[a passar estrada fora do sinal, a beber café, a fumar cigarros, a pensar que somos impenetráveis].
E eles ali, silenciosos, pacientes, a verem-nos e saberem de cor a cor do nosso cabelo, a saberem melhor que nós que se passámos a estrada fora do sinal foi porque tinhamos a cabeça estatica num palco qualquer que nos aceitasse os defeitos, as cicatrizes e os lados errados do coração, porque afinal de contas... seria apenas teatro.

11 outubro 2011

Cântico Negro (de J.Régio)

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

07 outubro 2011

De quantas ruínas se constrói o ser humano?

Quão vazia pode uma pessoa estar? Durante quanto tempo?
Quantas estradas serão necessárias até que seja preenchido o buraco que os anos de abandono provocaram?
De quantos erros nos podemos arrepender? Existe um limite?
Quanta vida pode alguém desperdiçar enquanto procura desesperadamente um rumo, um sentido?
Pode alguém desejar o fim e ao mesmo tempo, implorar para que seja salvo?
Como se afoga a cabeça e se deixa o resto do corpo à tona, à espera de um vislumbre de um caminho digno de percorrer?
Quantos enganos suporta a alma humana? Quais enganos? Serão enganos?
Quanto sexo é aceitável? Como saber que já chega? Quanto do sexo pode ser amor, e quanto desse amor pode ser efectivamente real?
De quantas frustrações vive o ser humano?
A vida, escolhemo-la ou é ela que nos escolhe a nós? Escolhemo-la ou vivêmo-la?
Somos naufragos, naufrágios ou toda uma cadeia de afogamentos?
Quantos atropelamentos e fuga podemos suportar? Quantos deles devemos aceitar? Quantos esquecer (e como), e quantos guardar dentro de nós?
De quantas mutilações pode alguém ser vitima? Será vitima? Quererá sê-lo? Ou tornar-se-á vitima sendo o agressor?
Quantos anos vale a vida humana? Existe uma média, uma justa média para que se possa dizer que já chega? Serão 60, 70...100? Ou 10, 20...40? Quem o dita, quem bate o martelo e afirma que ainda é cedo (ou já é demasiado tarde) para descontinuar o produto?
Porque se excedem todos os limites e ainda assim ninguém se dá por satisfeito?
Quantas desculpas pode alguém ter para acabar com tudo? E para continuar? Caberão todas elas na balança, terão realmente algum peso na decisão final? Serão lógicas e ponderadas ou tomadas no calor do momento (e não serão estas ultimas as mais honestas?)
Seremos assim tão importantes e valiosos ao ponto de nos julgarmos a raça soberana?
Não serão os outros, os "irracionais", soberanos em nosso lugar? Não terão eles mais anos, mais experiencia, mais valores que todos nós juntos e enroscados num edificio de 100 andares?
Em quantos escombros nos podemos esconder?
Saberemos fazer um real balanço da nossa existencia, sem falsas pretensões ou parcialidades?
Poderemos salvar-nos do caos, ou é ele quem nos salva a nós?
Somos descartáveis, e sabendo disso queremos à força a eternidade da memória?
Quão exaustos e totalmente vencidos nos podemos sentir após tantas questões sem resposta? Queremos sabê-las de facto, as respostas? Ou serão elas mais uma desculpa sem argumento?
Digam-me, queremos a luta ou, em determinados dias, precisamos apenas de um sitio para descansar?

"De quantas ruinas se constrói o ser humano?"

05 outubro 2011

Mutila-me

Anda, destrona-me, humilha-me, quebra-me, bate-me, morde-me, come-me as entranhas e deixa à mostra os órgãos para que todos os vejam.
Assina o teu nome na minha pele. Assim, eu mostro-te: cortas e espetas na carne, depois vais desenhando com cuidado as letras do teu nome até que se vejam bem os golpes e a tua identidade orgulhosa do feito.
Anda, mostra-me do que és capaz.
Pisa-me o ventre com força, espeta os teus dedos nos meus olhos. Cega-me, deixa que não veja, mostra alguma misericordia, sê um monstro gentil, com hábitos antigos de ternura.
Isso, sim. Sussurra-me ao ouvido em dialeto de milénios a grande cabra que eu sou. Insulta-me, faz-me chorar.
Não te surpreenderia que pedisse por mais, pois não?
Abomina-me e pontapeia-me. Grita-me e pergunta muitas vezes porquê.
Agora sim, estamos a chegar lá, repete o meu nome até que ele não faça sentido, esquece-te de mim, e de ti.
Maltrata-me até que o meu rosto te seja irreconhecível. Pendura-me numa àrvore enquanto ainda estou viva, e dança sob a chuva quente do meu sangue.
Ainda assim desiludes-me. Continuas a perguntar porquê e sabes a resposta. Anda, não sejas ingénuo, sabes bem que fui eu quem criou o monstro em que te tornaste.
Irrita-te. Revolta-te. Destrói tudo até que se vejam as emoções, até que o que sentimos seja palpavel.

Sim, só agora, meu amor, me vais ouvir dizer que te amo.

O Escritor (de J.L.Peixoto)

ele disse não sei porque escrevo o teu nome.
eu olhei para ele. eu disse o meu nome não
é tudo o que podes escrever.

ele escrevia o meu nome num papel. ele sentava-se
numa cadeira e o luar era a luz de um candeeiro
sobre as palavras escritas

ele disse amo-te.

ele disse tenho medo que um dia deixe de poder
escrever o teu nome. eu disse o meu nome não
é tudo o que podes escrever.

ele escreveu o meu nome durante muitos anos.
e eu perguntei porque continuas a escrever
o meu nome? ele olhou para mim. e perguntou
quem és tu?

03 outubro 2011

só não te perdoo que tenhas tido que me matar

Se, por algum acaso, já sabes para o que vim, porque continuas a cravar as tuas unhas na parede imóvel e estatica de casa?
Se sabes que não te posso tocar, porque insistes em abraçar o vento em busca do meu corpo?
Sabendo que não te respondo, porque me perguntas onde estou?
Se sabes, que até ao meu ultimo suspiro te amei, porque continuas a pedir-me perdão?
Dentro de mim guardo o carinho da hora em que me mataste. Foste agressivo, no entanto terno, soubeste colocar em cada golpe que desferias no meu corpo todo o amor que sei que sentias por mim.
Não me debati, digo-te, porque sabia que o que pretendias era alguma da tranquilidade que o que sentias por mim não te deixava ter, procuravas libertação, não raiva ou abandono.
Não continues nesse lamento histerico, não abraces a minha campa, é fria, dura e eu já lá não estou.
Vim só para te dizer adeus, porque quando me visitas, não consigo deixar de me comover com o quão preso tens estado à minha memoria.
Vim só para dizer adeus, porque mesmo depois de morta, quero com todas as forças que sejas feliz e gostava, se mo permitires, que me deixasses ficar-te na memória, para que permaneças na minha como o ponto de interrogação que sempre foste e quiseste ser. Não deixes que a minha morte às tuas mãos te guie no sentido contrário. O sentido contrario só te conduz para mais longe de mim.
Perdoo-te tudo, sempre o fiz. Só não te perdoo que tenhas tido que me matar para compreenderes que afinal me amavas e que hoje te tenhas esvaziado de tal modo que ficaste com a alma cheia de nadas.

02 outubro 2011

Violada

Antes de tudo sentia percorrer-lhe um tremor. Um tremor que saía do peito e cavalgava pelos órgãos fora.
Batia o pé com toda a força que lhe restava e mordia os lábios, queria expulsar aquela onda e ela parava.
Sentia-a outra vez, mais perto, mais forte. Mudava de pé, prendia o olhar no horizonte e reprimia a raiva. Engolia-a. Comia-a. Devorava-a.
O coração esmurrava-lhe o peito, espancava-lhe a existencia. E ela sempre sem desistir, a bater ainda com mais força com os pés no chão. Juntou-lhes as mãos na demanda, entrelaçou-as uma na outra e cravou-lhes as unhas com furia.
O tremor quase a chegar-lhe aos lábios, sentia-o passar lentamente no pescoço e quase a segredar-lhe aos ouvidos. Sacudiu-os e sentiu-os humidos. não compreendia porquê até sentir uma gota escarlate respingar-lhe nas pernas despidas. Eram as mãos, sangrava.
Rasgou um bocado da saia, ou o que tinha restado dela, e embrulhou os dedos. Deixou-se ficar um bom bocado a observar o tecido claro tomar o tom avermelhado do sangue, julgou por instantes gostar daquilo que via. Sabia-o dela o sangue, ainda dela aquele sangue.
Sossegou os pés e a cabeça descaiu mais um pouco, as forças esvaiam-se como que sugadas demoradamente.
Os olhos pousaram no que horas antes tinha sido a sua roupa interior e dentro da cabeça um grito. Um grito ensurdecedor, suplicante, dorido, amordaçado.
Sentia na boca alguns dos seus cabelos arrancados. Na barriga marcas de mãos. Não as dela.
O tremor a voltar e ela quase a desistir. Quase a querer que chegue rápido aos olhos, mas no ultimo instante a recuar e a deixar-se ficar no pescoço onde ainda tinha as alças do soutien amarradas.
Largou o tecido que lhe envolvia os dedos e quis percorrer o corpo semi-nu, saber o que restava dele, quem sabe reconhecer-lhe a anca, a cintura, as costas, o sexo.
Só ardor. Ardor e pisaduras. Pisaduras e feridas. Feridas e mais sangue.
Percorreu o peito ao de leve e sentiu fogo a queimar-lhe a pele. Fogo e medo. Medo e vergonha.
O tremor chegou por fim aos lábios e com ele sussuros que não controlava, soluços, pequenos apelos, suplicas quase silenciosas.
Deixou que lhe chegasse às palpebras e quando por fim chegou, sentiu uma nova gota restolhar-lhe na palma da mão ensanguentada.
Uma gota límpida, translucida, fresca, quase cheia de ternura. Quis certificar-se e levou-a à boca, salgada. Uma lágrima, a primeira lágrima. A unica coisa que não lhe roubaram, que era tão somente sua e que tinha conseguido reprimir dentro até agora. Uma lágrima.
Sorriu.
Depois fechou os olhos, deixou-se cair pesadamente sobre o lajedo e não gritou quando a cabeça embateu violentamente no chão.
Deixou que as lágrimas se misturassem com o sangue e morreu com a secreta esperança de que algures, houvesse alguém à sua espera num sitio qualquer, que lhe devolvesse a identidade, a alma, a dignidade e

a existencia.