19 outubro 2011

Enquanto a cafeteira derrama o leite

Vivia num daqueles apartamentos pequeninos, mas acolhedores de Alfama. Tinha vários canteiros de flores no varadim e vasos espalhados por toda a cozinha onde, com orgulho, plantava ervas aromáticas.
Profissão não a tinha, tinha um trabalho que lhe preenchia quase todas as horas, menos aquelas que passava no jardim junto à Feira da Ladra, onde se deliciava com as reliquias que os vendedores, sempre simpáticos, lhe mostravam, quais tesouros. Dizia recorrentemente que não tinha profissão porque dela não advinham grandes lucros financeiros, em oposição a ter o trabalho de expelir a alma todos os dias para folhas de papel que lhe valiam o suficiente para se sentir quase feliz, quase realizada, quase despida, quase, sempre quase a ficar vazia de emoções.
Naquela manhã, como em todas as outras, acordou e, enquanto o leite aquecia na cafeteira, sentou-se na mesa de madeira e ficou a admirar-lhe os veios entrelaçados com o fumo do cigarro que fazia questão de fumar em jejum (sempre tinha gostado da tontura matinal que provocava a nicotina quando lhe entrava no sistema).
Teve tempo para pensar em tudo, pensou que devia deixar de fumar, que devia de deixar de beber café. Que devia fazer uma visita à avó no lar com Alzheimer, que não a reconheceria. Que devia ligar à mãe e perguntar-lhe como estavam os cães, à irmã para saber do seu emprego precário e do casamento à porta que a entediava de morte. Devia fazer um telefonema ao irmão, saber-lhe as novidades da viagem que havia começado há um ano na Tailandia e que se tinha prolongado por tempo indefinido. Devia ir ao cemitério, deixar uma flor na campa do pai e vir-se embora muito rápido antes que as lágrimas lhe devorassem os olhos. Pensou ainda que devia ter mais cuidado com a alimentação, que devia comer sempre três refeições por dia e que antes de dormir devia levar para a mesinha de cabeceira um copo de leite.
O som da cafeteira a chiar deixou-lhe os pensamentos em suspenso. Leite por tudo quanto era sitio, a escorrer pelo fogão e a deixar no ar aquele cheiro horrivel. Enquanto se deixou ficar a olhar para aquela bagunça toda a olhá-la com ar ameaçador, permitiu-se voltar á enumeração de todas as coisas que devia fazer.
Devia comprar uma televisão, uma qualquer, desde que tivesse 70 canais e acesso ao canal de que tinha ouvido falar, que passava 24 sobre 24 horas o ultimo reality show que andava nas bocas de toda a gente. Devia comprar uns sapatos altos, muito altos, daqueles que deixam as mulheres incrivelmente elegantes mas tão dolorosamente magoadas e cheias de gretas nos pés. Devia ir a um Centro Comercial e ficar a passear entre montras, mostrar-me maravilhada com os saldos e sentir-se tentada a gastar muito dinheiro numa única saia. Devia aceitar o pedido de casamento do Diogo, vestir-se de branco e jurar em frente a um deus em quem não acredita, que aquela é a pessoa com quem quer passar o resto da sua vida, na pobreza e na riqueza, na saude e na doença. Devia deixar de escrever, ter uma vida melhor, quem sabe ser até uma pessoa melhor se o fizesse, gostar mais da vida que tinha, se deixasse de escrever.
Viu-se portanto entre a espada e a parede. Limpou o leite derramado e tomou a maior decisão da sua vida.
Amarrou um cachecol ao candeeiro da sala e saltou em direcção à carpete, onde os seus pés não voltaram a tocar.
No mesmo dia muitas pessoas receberam a mesma mensagem telefónica deixada no atendedor de chamadas, mãe, irmã, irmão, Diogo e até o coveiro a pegarem no telefone e junto ao ouvido, baixinho:
"è isto que eu tenho a dizer em relação àquilo em que vocês me querem transformar"

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