27 junho 2011

Uma questão de identidade

Às vezes perdemos tudo.
Temos uma tendência, indiscutivelmente humana para destruir tudo, com o mesmo sem à vontade com que construímos esse mesmo tudo.
(Bem, mas esta é outra tertúlia, para outro tempo. Para um dia em que esteja Sol, em que possamos reunir toda a nossa frágil humanidade e chorar sobre a destruição maciça a que nos permitimos, mesmo quando tudo brilha e é aparentemente feliz)

Perdemos canetas, chaves, guarda-chuvas. Preferencialmente, alicia-nos perder coisas pequenas, como isqueiros, pilhas, batons para o cieiro. Perdemos toda uma parafernália de objectos com uma indiferença notável, digna de audiência em lotação esgotada.
O drama, o verdadeiro drama, a cena em que toda a plateia silencia e, não obstante os próximos minutos se perde em auto-suficiência o quanto baste para se permitir à quase ausência de respiração, revela-se quando perdemos, ou preferimos esquecer-nos de encontrar outro tipo de pertences, bem mais obscuros.
Verifica-se uma certa propensão a hierarquizar todo e qualquer tema. Obrigamo-nos a respeitar determinadas regras e enfurecemo-nos quando alguém as contorna.
(Não só quando é contornada, mas principalmente quando sabemos que alguém o ousou e não foi apanhado.)

Esperamos que as regras sejam desrespeitadas mas que sejam sempre colhidos na rede os profanadores. Como se a sanidade mundial estivesse em causa, não descansamos enquanto todos eles não estejam estendidos em praça pública, onde se possa ver o sangue arrebanhado dos criminosos.
Não gostamos de perder malas, carteiras, telemóveis. Martirizamo-nos como se um pedaço muito importante de nós tivesse de repente dado sumiço. Podemos perder tudo, até pessoas estamos dispostos a perder (afinal de contas é o preço da existência, não é?) , só não suportamos perder aquilo que nos identifica, que nos confere um número (para estar tudo muito bem organizadinho) ou um determinado local que, num egoísmo fatal julgamos ser nosso, por direito, no mundo.
Queremos ser sempre tão únicos, sempre e apenas iguais a nós próprios, sempre auto-suficientes, sempre cientes e profundos conhecedores da nossa existência única, inconfundível e intransmissível. A identidade que alguém nos conferiu sem pedir permissão, direito a objecção ou opinião. A identidade que tivermos enquanto quisermos (julgamos nós) , enquanto a merecermos (julgam eles) , enquanto formos dignos dela (julgamos todos).
Rejeitamo-nos terminantemente a aceitar que alguém tenha a distinta lata de contornar tamanha dádiva apenas pelo prazer de questionar, opinar, julgar saber mais que os outros.
Quem ousa ser infeliz nesta sociedade, que tão amavelmente nos acolheu?
Afronta! Cria e educa o monstro que concebeste!
“Temos muitas frases dentro da cabeça, ideias arrumadas, catálogos de vidas perfeitas. Perdemos principalmente as pequenas esperanças, a poeira dos livros guardados na estante, o fim de tarde com sabor a Verão, as sombras dos caminhos…
Perdoem-me, se decido não escolher a vida pela ementa.”

Sobre ser-se mãe

Para se ser mãe é preciso uma quantidade inesgotável de altruísmo. É preciso ser-se paciente e amar todas as insignificancias.
Para se ser mãe é preciso acordar e deitar com um sorriso estampado no rosto, e os dias maus têm forçosamente que deixar de existir.
Temos que agarrar o coração para que não nos caia, e esquecer o que era a vida antes disso.
Para se ser mãe, para o ser realmente, é necessário ter-se um amor á vida desmedido, acreditar na sua eternidade. Acima de tudo, querer essa eternidade.
É preciso saber suspirar e respirar fundo muitas vezes. Não perder as estribeiras, ser-se são e tolerar o intolerável.
Acredito que para se ser mãe seja necessário, em determinadas alturas, não ter um pingo de amor próprio e ter aprendido bem a lição da auto-anulação.
Para se ser mãe é preciso saber esticar as horas, saber-se dormir, desaprender a solidão e aceitar, repetindo muitas vezes, que nada voltará a ser como era antes.
Para se ser mãe não basta gostar da vida ás vezes, sermos felizes ás vezes, sorrirmos de vez em quando. Temos que ser felizes todos os dias, sorrir em cada momento e gostar da vida sempre. Implica olharmo-nos no espelho e saber que estamos a envelhecer muito, a uma velocidade muito para lá do aceitável.
Ser-se mãe não se pode colocar em "pausa" para pensar, chorar ou restabelecer da dor. A dor não tem lugar. Para se ser mãe há que ultrapassar tudo muito rapido e ser-se detentora de uma incrivel força interior.
Para se ser mãe é necessário saber mentir e acreditar nessas mentiras. Não se pode dar parte fraca, não se pode desistir, não se pode mudar de canal nem embebedarmo-nos até à 5ª casa.
Ser-se mãe só a tempo inteiro e só depois de o sermos.
Ser-se mãe só de coração nas mãos e visceras á mostra.

22 junho 2011

Tempo Parado


 Hoje tive a certeza de que não é neste mundo que quero viver.
 Atravessei muitas estradas, comprei cigarros e bebi café.
 Comi bolo de chocolate e passei os olhos, demoradamente, nos transeuntes da rua.
 Liguei a televisão e só vi desgraças, gente deprimida e a solidão jorrou por todos os lados do ecrã. Imaginei todos os velhos e solitários deste mundo fora a serem contaminados por ela e a criarem a ilusão de que, de uma forma distorcida, a televisão lhes devolve os momentos que deixaram parados nos ponteiros do relógio.
 Naveguei nessas ondas sem fim da internet e vi todos os sentimentos e valores trocados: amizade por palavras de remissa, amor por pornografia, cultura por chouriços de encher saco e infancia por bonecos capitalistas.
 Li livros que pediam a atenção e carinho que uma editora se limitou a colocar no mercado em troca de lucro.
 Escrevi o mundo e ninguém me leu. Chorei as lágrimas que ninguém entende. Amaldiçoei as letras e palavras por não as saber conter cá dentro e no entanto, quando libertas, terem o sabor amargo de quem sente velhos e pesados os anos.
 Pela tarde estive com um amigo sábio, um domador do tempo e dos meandros da vida e o que ele me disse, no alto da sua sabedoria foi: A vida é uma mentira. E eu acreditei.
 Acreditei porque em boa verdade, nada nem ninguém até hoje foi capaz de me mostrar o contrário.
 Por isso acredito e afirmo com veemência que este não é o mundo onde eu quero viver, porque o amigo mais sábio que tenho me disse que a vida era uma mentira.
 E é, senão eu não estaria aqui a escrever sobre ela, mas sim sobre o amor, a amizade e o respeito.

18 junho 2011

Segredos Cabeludos

Partimos sempre do mesmo ponto, arremessamos sempre a mesma pedra, escondemos sempre os mais cabeludos segredos e, no fim de contas, é tudo poeira.
            Por detrás daquela janela vivem-se vidas, amarguram-se saudades, levam-se ao limite forças e paciências. Tudo é uma constante ausência gravada nas paredes despidas de memórias, ou talvez despidas dessa grande matéria, a poeira.
            Tudo é sofrimento, amor estrangulado, orgulho ferido.
            Todos os dias se arremessam as mesmas pedras e todos os dias recomeça a quotidiana rotina do silêncio imposto assim, por dá cá aquela palha.
            A toda a hora se sentem estalos, maldições, violência gratuita para os vizinhos intrometidos. Nem é necessário ligar o televisor, tudo está ali, à mão de semear, à distância de escassos metros, de uma campainha que existe mas na qual já ninguém toca.
            No início chamou-se a polícia, a dita autoridade competente para actuar em conformidade com este tipo de situações. Mas diziam os agentes, cuidadosamente fardados e meticulosamente engomados, que era imaginação, que nada de estranho ou anormal se passava daquela porta para dentro.
            Revoltaram-se as beatas, fizeram-se manifestações, arremessaram-se “cocktails molotov”, foi chamado o padre da paróquia, escreveram-se cartas ao Primeiro-ministro. Mas da angustiante casa nem um pio se fez soar, nem um gesto de apelo ou agradecimento.
            Não se compreendia a ingratidão e maldiziam-se os indivíduos em questão.
            O tempo abateu-se sobre os telhados e o Sol pôs-se muitas vezes naquela janela onde se vivem vidas e se amarguram saudades.
            Os vizinhos intrometidos perderam a pica do escândalo, que se foi abafando e gradualmente esquecido.
            Uma certa noite ouviram-se estrondos, gritos, muitas pedras a serem arremessadas e os cabeludos segredos ‘encarecaram-se’. As beatas saíram das suas casas para espreitarem sorrateiramente o sucedido.
            Da porta sempre fechada e da campainha à muito silenciada saiu a mulher com sangue nas mãos, nos olhos, nas pernas e houve quem dissesse que até do peito, rasgado e dilacerado após anos de humilhações á porta fechada.
            Avançou cambaleante até ao pátio e parou bem no centro dos olhares atentos que a fulminavam, perplexos.
            Disse uma única palavra, que mais simples não podia ser, disparou sobre a sua têmpora direita e deixou-se cair ensanguentando a calçada e os demais que estavam próximos da cena do crime.
A última palavra da mulher cambaleante foi:

“Obrigada.”

            Horas depois foi encontrado o corpo do marido, morto, onde estava escrito um bilhete que o seguinte dizia:

“Estou cansada destas danças que faço à nossa volta para ver se sobrevivo e faço o nosso amor valer a pena. Perdoa-me, se disso fores capaz.”

            E no verso do bilhete um provérbio de terras distantes:

“Só porque te matei isso não significa que não te ame ou respeite.”




10 junho 2011

Gostava que me tivesses conhecido

Gostava de te ter conhecido noutro mundo, num sitio bonito com pedras de mármore onde descansar.
Gostava de te ter dito no meio da chuva, que embora não me ouvisses devido ao som das pingas a restolhar no chão, eu estava ali e dizia que gosto de ti.
Gostava que me tivesses conhecido antes de tudo. Antes do desastre, da perdição, do esquecimento, da balburdia. Para que te pudesse mostrar como gosto de sorrisos e em como adoro a minha gargalhada estridente, aquela que tu nunca ouviste porque não te conheci nesse antes do antes sem corda bamba, sem amarras, sem pernas e braços partidos.
Gostava de te ter levado à boleia a conhecer esse mundo fora. De te ter levado ao meio da floresta só para que pudesses tocar a tua guitarra e escutá-la como nunca antes o havias feito, porque o burburinho era infernal.
Gostava de te ter levado a dançar. Gostava que me tivesses conhecido quando todas as minhas horas eram passadas a dançar e em que a musica entrava em mim como uma labareda. Gostava que tivesses visto como antes os meus olhos chispavam vida.
Gostava de te ter explicado que a minha vivência era moldada pela vida em si, que a minha angustia era alimentada pela minha loucura, e que a minha loucura tinha tanto de saudavel como de insane. Só queria bater terreno.
Gostava que me conhecesses quando eu bebia dos olhos das aves e passava tardes encantada a olhá-las demoradamente, a adivinhar-lhes as viagens.
Gostava que me tivesses conhecido quando o amor ainda era bonito, quando tinha tudo para dar e tanto gostava e sabia receber. Quando acreditava na magia dos dias e quando queria salvar o mundo inteiro da solidão, da insatisfação e do caos.
Gostava que me tivesses conhecido menos egoista, menos amarga, menos desesperada, mais feliz.
Gostava de te ter conhecido quando eu ainda amava o mundo todo e julgava ser infeliz.
Gostava que me tivesses conhecido quando o sexo não era só sexo, mas quando o sexo era tão mais que apenas isso. Quando o sexo prometia um dia seguinte com borboletas no estomago e a tranquilidade de se ter tido prazer fosse qual fosse o desfecho.
Gostava que me tivesses conhecido quando eu não acreditava em desfechos.
Gostava que me tivesses conhecido (por hoje é tudo, e já é tanto!). 

Literatura

"Talvez,

pela primeira vez,

deseje que o que escrevi

seja Literatura."

(P.Paixão)

Linhagem de Artistas

Há uma coisa, uma ideia, assim como um vírus ou um cancro, que me persegue desde que me lembro. Sabem, descendo de uma linhagem de artistas, de todas as espécies e feitios, dos que são admirados, dos que são menosprezados, dos que são crápulas e dos que merecem uma segunda opinião.
O meu pai, como tão bem me souberam explicar, embora nunca o tenha conhecido, era um pintor surrealista. Daqueles que têm o condão de colocar em tela aquilo que quase ninguém ousa sequer pensar ou querer. Diz que, em vida, tinha quadros em hotéis de renome por toda a Europa, e que volta e meia recebia daqueles prémios que dão aos artistas que são muito bons, naquela onda muito pouco interessante de lhes encherem o ego e os motivarem para uma continuação, de preferência se esta implicar que o publico alvo se vá estreitanto até se resumir a um amontoado de gente elitista com a mania que comeu um rei ao pequeno-almoço e que o carrega, qual fardo pseudo-intelectual, vida a fora.
O meu irmão tem, ainda hoje, a arte de transformar em números altamente complexos tudo aquilo em que toca. Tem daquelas mentes muito brilhantes que ninguém percebe, tal é o embróglio que para ali vai dentro, e já ninguém tenta, porque certamente enlouqueceriam. Gosto de pensar nele assim como uma pessoa que tinha mesmo que existir, que veio adicionar coisas difíceis ao mundo, mais ainda do que aquelas que ele, por si só, já acarreta, e há que observar que esta é uma arte com que dificilmente alguém compete. Tem um feitio…artístico, para não dizer ruim com’ás cobras, um coração que até se gela só de tocar, mas o ideal para pedir daqueles conselhos que podem efectivamente mudar a vida de alguém. É metódico e vai directo ao cerne da questão, não gosta de perder tempo com floreados nem, em momento algum, é capaz de se sair com aquelas bocas muito foleiras de que “o mundo é injusto” e “tal e coiso”.
A minha mãe bordava os sonhos ás crianças. Nunca lhe compreendi o engenho, sou uma coisa que acredita que é um crime pôr criancinhas no mundo, para quê submeter a mais gente esta coisa a que se chama vida? Tem a arte de pôr tudo a rir, de colorir aquilo é cinzento, de fazer com que os dias sombrios se tornem mais leves e juro que quase acredito quando ela se põe com aquela conversa de que a trovoada são as nuvens a brincarem umas com as outras e que os relâmpagos são os sorrisos da brincadeira. Tem uma paciência invejável para fazer trabalhos manuais, daqueles que implicam muita perícia, cheios de cores fluorescentes que se entrelaçam até parecerem quase saídos da mente um gajo altamente enterrado em ácidos.
A minha irmã, que é tão bonita que até dói, nasceu com o condão de amar pessoas. Pura e simplesmente por serem pessoas, por existirem, por respirarem. Despreza qualquer tipo de atentado á vida humana e está sempre em busca da próxima alma para salvar. Dedicou-se portanto a uma daquelas profissões que atenuam a dor e que implica, invariavelmente, lidar com queixumes e histórias intermináveis que as velhinhas, ou espíritos mais solitários, teimam em contar num tom monocórdico de fazer adormecer o mais hiperactivo dos miudos, qual novela de cordel. Sempre a conheci com um coração enorme, daqueles em que cabe o mundo inteiro, nunca se cansa de querer estar lá, de ser a pessoa “conta com o que for preciso” e de encontrar as soluções mais mirabolantes para qualquer tipo de problema que se lhe atravesse o caminho. Tem a arte da bondade, a minha irmã, que eu amo de morte e ás vezes detesto, porque faz brotar o pior de mim ao ser sempre tão perfeita que até há quem julgue que é invenção.
O meu tio, no entanto, é o tipo de artista que mais admiro, se é que sou capaz de admirar seja lá o que for. O meu tio tem a arte da ilusão. Não daqueles truques pindéricos que os homens se põem a concretizar na televisão, que acabam sempre com um sorriso parvo na cara e um olho a apontar pó “olhem bem para mim, sou tão brilhante que até vos ofusco!”, mas aquelas ilusões subtis, como a do amor. Sempre o conheci comprometidíssimo até aos ossos, mas sempre com mulheres diferentes. Sempre estupidamente apaixonado, como se o mundo fosse entrar em colapso nas próximas horas e ele tivesse que dar tudo o que tinha às donzelas que o iam acompanhando. Talvez por isso o tenha apanhado tantas e tantas vezes no número “queca”, que se dava fosse em que local fosse, sem que isso me tenha alguma vez, chocado minimamente. O meu tio é tão bom naquilo que faz que, embora tenha estado de casamento marcado pelo menos umas 4 vezes e tenha simplesmente optado por ir bebericar um Martini Bianco em vez de comparecer á cerimonia, as gajas continuam malucas por eles. Vejam lá bem que todas, sem excepção, além de terem sido convidadas para os casamentos vindouros, também se deram ao trabalho de ir. E o “ir” implicava uma serie de coisas, que vocês devem imaginar tão bem quanto eu, e nenhuma delas passa por ter um pingo de amor-próprio ou orgulho. Por isso, e depois de pensar mais a serio na coisa, chego á conclusão que a arte do meu tio é afinal de contas a de desfragmentar pessoas, fazê-las anularem-se até ao ponto mais vergonhoso possível e de um dia, cada uma delas nas suas pequenas individualidades, irem olhar-se no espelho e se aperceberem que já lá não estão, que se deixaram ficar a dormir á sombra de um chaparro com cara de homem, o meu tio.
Desta forma, dou comigo por várias vezes com este peso tão grande em cima dos costados, a de ter que encontrar alguma arte, algures, numa esquina qualquer, só para poder dar seguimento a esta invejável linhagem de artistas.
Já tentei de tudo, juro!
Mas eu não sou nada boa a pintar, chega a um momento em que me irrito com aquelas tintas todas e desato em esguichos epileticos contra a tela, o que resulta é um amarfanhado de texturas que fazem chorar. Cheguei a tentar convencer-me que isso também poderia ser uma forma de arte, que aqueles emaranhados malucos teriam um sentido ao final do dia, frustração. Mas depois pensei que isso nunca me iria conceder um daqueles troféus reluzentes a imitar ouro, a não ser que me matasse, mas também não tinha vontade disso, além de uma linhagem de artistas, não queria adicionar o peso de suicidas também. Portanto fui num dia de Sol á campa do meu pai e pedi-lhe muitas desculpas, mas que eu não tinha, claramente saído a ele.
Nunca tentei sequer bater a arte do meu irmão, os números detestam-me e eu a eles, e eu não acredito em relações em que ódio impera a todas as horas, e em que o retorno seria acabar os dias (para o resto da minha vida) com a cabeça a borbulhar e a doer, sem ter tempo sequer para pensar que a minha arte, era realmente uma arte.
O amor da minha mãe ás criancinhas não me é possível de atingir. Simplesmente não está mim, e o que é assim, assim será. Não que deseje algum mal aos meninos, mas gosto de os ver ao longe, de lhes imaginar o futuro. Não consigo nunca deixar de pensar que se elas trocassem duas de letra comigo, eu lhes arruinaria por certo todas as ilusões de que é feita a infância, e muito bem (diga-se de passagem), eu é que não suporto ver gente que se engana constantemente nas esquinas desta coisa que é a vida só porque um dia lhe contaram uma balela foleira ao molho que começava com “era uma vez” e terminava em “viveram felizes para sempre”.
A minha irmã está tão longe de tudo aquilo que eu considero ser, que até se me doem as vísceras só de me imaginar a amar o mundo inteiro, já viram bem o trabalho que isso dá? E além do mais tenho tolerância quase nula para conversas de cordel, e as dores chegam-me as minhas. Provavelmente aconselharia todos a combinarem um pic-nic numa linha de comboio onde passem os Alfas e que aguardassem pacientemente que a locomotiva chegasse (não se podiam era esquecer dos garrafões de tintol, que aquele ruído é irritante e se é para morrer, que ao menos se morra enfrascado!)
O mais próxima que estive foi da arte da desfragmentação de pessoas do meu tio. Gosto de levar o mundo a um extremo insane, de pôr tudo quanto é gente a questionar a minha pessoa, de os obrigar a odiarem-me , e se não querem, porque são muito boas pessoas (como a minha irmã), faço-lhes com cada uma que lhes mudo as ideias num abrir e fechar de olhos. Mas a merda é que depois fico a pensar que não tenho arte nenhuma e dá-se-me um peso na consciência terrível.
Houve uma altura em que quase consegui convencer algumas pessoas de que escrevia. De que a minha arte era essa, a de passar para o papel aquilo que a minha cabeça bipolar não conseguia condensar em gritos. Mas isso foi só um quase, um quase que quase nem chegou a ser nada. Rápido fiz questão de saltar essa cerca e tirar daí o meu cavalo, que os meus pensamentos são tão embrulhados que nem para o papel os conseguia transcrever, e não queria colocar-me na posição de escarrapachar textos quase biográficos em livros que poderiam, eventualmente, correr mais que casas do que a minha.
A ideia, o cancro, esse tal vírus que me contorce o estômago por não ter nenhuma arte, ás vezes fica mais fácil de carregar. Faço a quimioterapia da junção da linhagem de artistas e chego á conclusão de que, não podendo ou querendo ter nem um bocado de nenhuma das artes atrás mencionadas, nunca recairá sobre mim a responsabilidade de ter que seguir com a linhagem para as novas gerações, pelo simples facto de não acreditar em novas gerações. Então, nestes momentos, enrosco-me muito bem enroscadinha na cadeira da escrivaninha e desejo com muita força ser uma coisa que não sou, gostar das pessoas e do mundo e conseguir pespegar num raio de uma folha de papel (podia bem ser daqueles higiénicos de limpar o cu) tudo aquilo que a minha linhagem de artistas não conseguiram condensar num grito, aquele que tenho ás voltas dentro de tudo isto que tenho cá dentro e que não sou capaz, nem com engenho ou arte, transpor para uma folha em branco.

Falida

Quando fiz dezanove anos decidi que queria ir ver o que o mundo tinha para me oferecer. Fugi de casa numa manhã de Sol, apanhei o autocarro até á estação dos comboios e segui para o destino que tinha a hora de partida mais próxima, Funcheira.
 Deixei recado para os compradores da minha casa, desejei-lhes felicidades debaixo daquele tecto e pedi-lhes que não fizessem muito barulho depois das dez da noite, que a Dona Teresinha (a vizinha do andar de cima) dormia a essa hora. Pedi á imobiliária expressamente que tentasse encontrar uma família simpática, com filhos adolescentes porque quando acordava com algum barulho, a Dona Teresinha descia as escadinhas, pé ante pé, até á minha porta e pedia-me para lhe contar uma história. Sempre mo tinha pedido a mim, gostava que lhe contasse as coisas que ia aprendendo na escola e foi ela quem soube, em primeira mão, da primeira vez que o meu coração ficou tão partidinho que até metia dó. Lembro-me que fomos interrompidas pelo meu pai, que ao ouvir barulho no pátio do prédio aquelas horas tardias, foi lá zangar-se connosco e mandar-nos ás duas para a cama. Eu para o meu quarto cheio de cores e coisas divertidas com que me entreter, e a Dona Teresinha para a casa dela, fria, cinzenta, solitária e com pedaços de tinta a cair das paredes.
Foi a minha primeira amiga, sabem? Não tinha muitos estudos, mas sempre que falava o mundo ficava como que suspenso, porque tinha sempre alguma coisa muito sábia para dizer. Zangava-se comigo quando me espreitava da janela e me via chegar da escola vestida com o meu mailot do ballet e as meias todas rasgadinhas, cheias de buracos de onde se viam as feridas provocadas pela correria do recreio.
 Como á hora que eu chegava ainda não estava ninguém em casa, subia e ia directa para a casa de banho da Dona Teresinha, tomava um banho e quando saía da banheira já cheirava a chocolate quente e bolachinhas acabadas de fazer. Enroscava-me á lareira enquanto, com uma paciência de santa, ela me cosia as meias e me descompunha. Riamo-nos muito, eu e ela. Riamo-nos de quase tudo, até nos rimos num dia em que passei por uma foto daquelas muito antigas a preto e branco onde figurava o seu marido que tinha morrido há uns anos atrás, e me pus a imitar-lhe a pose em frente ao espelho, com um lápis preso entre o lábio e o nariz a fazer de bigode, e uma almofada no estômago a imitar a barriga proeminente do senhor. Quando ela me viu pensei que se ia zangar muito comigo, mas não, riu-se a bandeiras despregadas enquanto me foi contando algumas aventuras e desventuras dos seus anos de menina e moça.
À noite, a Dona Teresinha vinha sempre jantar lá a casa. A minha mãe tinha muito cuidado com o sal e os condimentos, porque não faziam nada bem á Dona Teresinha, e o meu pai sorria muito quando ela punha um pedaço de pão dentro do copo da água para o amolecer, sem nunca se esquecer de me dizer a mim e ao meu irmão que ela só o fazia porque os dentinhos já não tinham tanta força, mas que os nossos sim, e que portanto não admitia faltas de educação a mesa.
Como os meus pais tinham sido os dois criados em orfanatos e não tinham família, a Dona Teresinha era como se fosse a minha avó e nunca faltava á Pascoa, ao Natal e aos nossos aniversários. Tricotava-nos carapins e trazia sempre um pires com bolachas de manteiga, que se acabavam em menos de nada com a razia que eu e o meu irmão lhe dávamos. Éramos, nós os quatro e a Dona Teresinha, o que se chama de uma família normal, feliz, unida. Também nos zangávamos, mas gostávamos tanto uns dos outros que a zanga passava rápido e não tardava a que os sorrisos imperassem outra vez.
Abandonei aquela casa porque, depois da morte dos meus pais e do meu irmão, ficou tão vazia que os meus passos pareciam bombas a rebentar no soalho.
A Dona Teresinha foi muitas vezes lá a casa, mas eu já não tinha mais histórias para lhe contar. Ela bem que ia insistindo comigo. Trazia-me muitas bolachas que ficavam a ganhar bolor na caixa do pão e com o tempo, também ela deixou de aparecer. Ficamos as duas, cada uma no seu canto, eu, na minha casa vazia, sombria, despida e triste, e ela na casinha dela, fria, cinzenta, solitária e com ainda mais pedaços de tinta a cair das paredes.
Foi por isso que decidi fugir e ver que mais tinha o mundo para me oferecer. Vim parar a esta terra abandonada no meio do Alentejo onde todas as velhinhas são Donas Teresinhas, e todas as crianças são o meu irmão. Em todas as senhoras que me sorriem procuro o sorriso da minha mãe, e todos os homens que me dizem “Bom dia, menina!”, podiam perfeitamente ser o meu pai.
Afinal é isto que o mundo tem para me mostrar, uma repetição incansável do que foi, que me dói porque nunca mais vai voltar a ser e eu, que não sou capaz de mexer na herança que me foi deixada, continuo a trabalhar nas hortas das Donas Teresinhas, com quem não sou capaz de falar, porque as histórias esgotaram-se-me, e continuo a dizer aos advogados que me perseguem por causa da herança parada que estou falida. Eles não percebem, pois claro que não percebem, mas eu percebo, e a Dona Teresinha que eu também abandonei percebe, que estou efectivamente e irremediavelmente falida.
Sim, esta foi a frase mais sábia que a Dona Teresinha alguma vez me disse. Na altura não compreendi, não podia, não tinha alma que chegasse para isso. Mas agora, todas as noites em que calço os carapins antes de me ir deitar, repito baixinho, de mim para mim: Falida, estás emocionalmente falida. E sei que a alguns quilómetros de distância, a minha Dona Teresinha, está a repetir exactamente a mesma coisa, encostada á moldura daquele senhor barrigudo e de bigode farfalhudo, que a deixou assim, efectivamente e irremediavelmente falida.

E Elas a Gostar

Sabem que mais? Eu até gosto deste meu banquinho. Tem uma vista engraçosa para o lago dos patos e o Sol, quando bate, não é tão forte que me cegue as vistas, nem tão frio que me gele os ossos cansados. Tem uma tábua meia saída do lugar, lá lhe saltou um parafuso e aquilo durante a noite, ás vezes, espeta-se-me na coluna e ando ás voltas madrugada fora a ver se apanho o jeito á coisa. Está meio velhote, lá isso é bem verdade, mas a bem dizer já cá anda há tantos anos e os pombos gostam de vir fazer uma visita volta e meia.
Aqui do meu banquinho tenho uma vista privilegiada sobre o rio, aposto que nenhum desses emproados vestidos á pinguim o ano inteiro têm uma vista desta categoria para lhes alegrar as manhãs. Lá devem gastar rios de carcanhol naqueles quadros manhosos que vendem nas galerias da rua de baixo, com paisagens das ondas a bater nas rochas num mar que nem sequer deve existir. Eu cá nunca vi um mar assim, e olhem que já tenho alguns anos de escola nesta vida de marca o passo. Mas enfim, como a Antonieta ali do banco mais a baixo diz, cada um sabe de si e deus sabe de todos (eu cá não me fiava nisto, mas ela lá sabe o que diz, e a bem dizer eu já só digo parvoíces para passar o tempo morto, há quem faça palavras cruzadas, eu cá gosto mesmo é de dizer baboseiras!).
Isto aos fins-de-semana fica uma animação! Eu cá gosto de ver a juventude a cirandar por aqui, dá mais vida às horas e eles dizem com cada uma que, às vezes, até parecem duas! A única chatice é o cheiro que fica no dia a seguir, há alguns que se vomitam todos e mijam-me as pernas do banco, mas com isso posso eu bem, e sempre fico grosso sem gastar um conto de reis, que eles lá me acham piada e me vão pagando umas vinhaças para animas as hostes.
O que eu acho mal é o espectáculo das beijoqueiras que às vezes se dá por aqui, andam todos enrolados uns com os outros e os mânfias, de fala meia entaramelada, a dizer às moças que as querem comer. Ora que eu cá não percebo nada destas dietas hoje em dia, mas comer uma rapariga não me parece lá muito adequado, até porque os paizinhos das meninas de certezinha que ficam fulos com a coisa. Mas elas até que parecem gostar e lá vão com eles rua a baixo para detrás do muro fazer coisas estranhas, nem lá quero ir ver, só de imaginar as meninas com um braço a menos, fico meio zonzo com o enjoo. Mas vem de lá muito barulho, lá isso é verdade, os rapazecos nem cuidado devem ter, lá lhes arrancam os dedos dos pés á força e elas ficam-me naquela gritaria não sei quanto tempo, e depois quem não dorme sou eu!
Mas regra geral até se está bem por aqui, não me chateiam muito e volta e meia lá me trazem uns restos de costeletas (que é como quem diz os ossos) para eu roer, vocês nem imaginam como é saborosa aquela carninha de dentro. Quando era miúdo era muito esquisitinho realmente, com a gracinha do senhor! Aquilo é que é um pitéu! Já me dizia a minha santa mãe que em casa onde não há pão, até as migalhas vão, e não é que as migalhas sabem bem com’ó catano?
Só tenho saudades de tomar uma banhoca daquelas que duram a manhã inteira, até se ficar com as peles dos dedos meias encarquilhadas. Sabem, aquela coisa de termos a água a escaldar em cima da cabeça, até se nos ficam as ideias mais claras.
Pois claro que é por isso que ando com a cabeça feita em puré, a pensar que durmo num banquinho confortável, que tenho vistas privilegiadas sobre a cidade, e que o que os moços vão fazer para trás do muro é comer as raparigas, quando a verdade é que vão fodê-las sem dó nem piedade, e elas a gostar, as desgraçadas. E elas a gostar! (pelo menos é isto que me conta a Antonieta ali do banco mais a baixo, e eu acredito, pois claro que acredito (Ela tem vistas privilegiadas para trás do muro, sabem?)

Coitadinha!

Tanto silencio para quê?
 A sério, é que continuo sempre a fazer esta pergunta e ninguém que responde. Olham-me de lado, vejam lá bem que a Dona Miquinhas até já internada me quis!
Ah! Mas ela a mim não me engana, saia de funil até aos joelhos e aquelas blusas horrorosas com folhos na gola, a fingir que está de luto, a alcoviteira! Vejam lá que um dia, estava eu tão animada na minha casinha do 3º andar (daquelas antiguinhas, lá para a zona de Alfama) a ouvir uma música muito bonita e aquela velha veio-me aos saltos prédio acima aos gritos, completamente estouvada, a dizer que ainda chamava a polícia, que eu não podia estar naqueles preparados á varanda. Que querem que lhe faça? É uma pudica, é o que é! Se estava mal vestida? Reparem bem no que aquela coscuvilheira de primeira apanha põe as pessoas a pensar! Estava lá agora mal vestida, nem sequer estava vestida! Deve ter alguma coisa contra a cor-de-pele, só pode! Eu sempre achei que aquela choradeira toda e língua de mil e quinhentos metros (bem a podia vender por 3 contos de reis, que lhe faziam mais uso) eram problemas de infância, lá alguma professora daquelas salazaristas lhe deve ter arreado quando se enganou nas cores! E que tenho eu com isso? É que é sempre a mesma conversa de algibeira, vir’ó disco e toc’ó mesmo, como é que uma pessoa não se há-de chatear?
E o sr. Joaquim do quiosque dos jornais? Esse é outro! Sempre com ar de quem lhe deve e ninguém lhe paga, o desgraçado! Juro-vos que um dia destes chego-me a ele por trás, baixo-me e mordo-lhe as canelas…para ver se ele aprende! Ora, agora devem estar a pensar: então mas lá porque o homem tem cara de maus amigos, coitado, por que raio tem que levar contigo a morder-lhe as canelas? Ora eu explico, não quero que fiquem a pensar que sou implicativa (isso é a Dona Albertina, do 2º esquerdo!). Ainda na semana passada lá fui, ao quiosque do sr. Joaquim, pedir-lhe um daqueles berbequins de furar a parede, porque tinha que pendurar um quadrinho muito bonito daqueles que vendem na feira da ladra com um menino muito triste a chorar, e ele sai-me lá de dentro com uma vassoura na mão e diz-me, com ar todo empertigado: vê lá se eu não te penduro a ti aqui no cabo da vassoura! Ainda por cima depois de lhe ter dito que lhe pagava o que fosse preciso, porque o menino estava cada vez mais triste e qualquer dia chegava a casa com uma inundação, tal era a fúria com que o rapazinho chorava! Acham isto bem? Olhem, fiquei logo mal disposta o dia todo. Lá tive que ir furar a parede com uma faca, demorou-me um talhão de tempo e pôs-me a parede num estado que nem vos digo nem vos conto!
E isto só para começar! Vocês não imaginam o inferno em que aquela gente me faz a vida!
Na outra noite, estava eu enroladinha na minha manta de retalhos, e pôs-se aquela maluca da Dona Albertina em cânticos noite a dentro. É que ainda por cima cantava mal até dizer basta, e sempre com aquela voz de rachar canos a matraquear, coitadinha da sra Amália Rodrigues, que há-de andar às voltas na campa! Olhem, estava tão chateada que até lá lhe fui bater a porta para a desancar ao palavreado grosseiro, mas mal lá cheguei pôs-se a disparar com uma arma! Sim, imaginem lá a minha cara quando ouço aquele tiroteio todo aquelas horas da noite, realmente já não há respeito nenhum. Não me chegava a música periclitante e ainda tive de levar com os balázios (mas deixem-me que vos diga, lá a casa dela, há-de ter ficado numa balbúrdia, com aqueles tiros todos contra a parede).
Mas ainda não vos contei da melhor! De manhã, estava eu a tentar recompor o sono que não tinha dormido á pala da alucinada da Dona Albertina, vem-me um sr todo fardado, com um barrigão muito grande, de onde lhe estava quase a saltar a camisa e uns quantos botões (tinha um boné e tudo, lá pensava que estávamos no Carnaval!), a perguntar-me se tinha ouvido algum barulho estranho durante a noite! Ai, juro-vos, só me apeteceu dar-lhe com a almofada na fronha! Mas eu não sou maluca nenhuma, lá lhe respondi com muita calma (com os malucos mais vale nem discutir) que só tinha ouvido a Dona Albertina em cacarejos toda a noite (é claro que não lhe falei do tiroteio, a velhota é maluca, mas não a quero em trabalhos!).
Ora quando o sr. Fardado se foi embora, estava já eu quase quase a fechar a olhaca para o lado de lá, quando se põe um paspalho lá fora com uma carrinha daquelas de hospital (deve tê-la ido roubar, de certezinha!) a sirenar, sem parar! Olha-me que uma destas! Olhem, estava tão furiosa que fui logo para a varanda javardar com o homem, e ele especado a olhar para mim, parecia um burro a olhar para um palácio. Enfim. Mas depois lá vi que aquilo era mesmo a serio porque saiu uma maca toda coberta da porta do prédio, só lhe vi as chinelas nos pés, a espreitarem ao fundo do lençol. Não é que era a Dona Albertina?! Lá po raio da mulher é tão má raça que foi morrer! Estou segura que fez birra por lhe ter batido a porta, vai desta deu um tiro nos cornos e amuou, a velhota! E agora como é que vai ser?
Pronto, no dia a seguir lá tive que ir para a procissão do funeral da mulher, senão até parecia mal, vizinhas á tantos anos, e eu sem lá pôr os pés. Não acham que fiz bem? Ora, não sejam maldosos, a senhora era meia tonta, mas que se há-de fazer? Há que ser civilizado e prestar uma homenagenzinha á Dona Albertina.
E ainda a missa ia no adro! Nem imaginam o que foram aqueles parvalhões aprontar depois, e ainda por cima durante o funeral da coitadinha da Dona Albertina, que era tão boa pessoa, uma daquelas pessoas muito puras, sabem? Implicativa, mas uma jóia de senhora!
Estava eu a enfeitar o caixão da senhora com umas flores (vejam lá que nem foram capazes de lhe pôr alguma corzinha no caixão, coitadinha!) e vem-me outro senhor fardado e põe-se a agarrar-me e a pôr-me algemas nos pulsos. É claro que fiquei chateada! Pus-me logo a chispar: Mau! Querem-me ver esta agora? Já cá faltava o cortejo do carnaval! O homem lá ficou meio ofendido porque deve ter pago um dinheirão por aquela vestimenta e olhem, em vez de ir á loja das mascaras reclamar, não, deu-me um safanão que até me virei ao contrario. Isto há pessoas muito sensíveis neste mundo, não concordam?
Levou-me para um sítio muito frio, ainda me pus aos gritos, juro-vos que estava convencida que ainda me ia violar o homem! Porquê? Então não se está mesmo ver? Estávamos num sítio muito escuro, muito frio, cheirava a chichi que se fartava e havia lá uma cama muito pequenina com um coberto muito foleiro cinzento em cima, eu já vi nos filmes, o que é que pensam? Que eu ando cá a ver passar a banda? Nada disso! Eu bem sei que é para esses sítios que levam as raparigas para as desflorarem, coitadinhas! Mas o senhor foi muito simpático, lá se foi embora. Mas deixou-me ali trancada, disso é que eu não gostei mesmo nada. Estava quase na hora da minha novela e aquele asno a fazer-me perder tempo ali. Mas enfim, temos que fazer uns sacrifícios uns pelos outros não é?
E não é que o homem nunca mais voltava? Fui lá á gradezinha chamar por ele, porque tinham que mandar vir alguém para ver dos canos, que aquele lavatório estava a pingar agua, e ainda me inundava aquilo tudo, e depois eu queria ver quem é que limpava a porcaria toda! O homem nem sim, nem sopas. Pronto, desisti, depois o problema era deles. Eu cá tinha a novela para ir ver!
Passou-se muito tempo e eu já estava aborrecida de ali estar. Bolas, que isto realmente uma pessoa já nem pode ser raptada com alguma emoção, nos filmes não é nada assim, há sempre coisas excitantes a acontecer. Aquilo ali era um tédio de morrer!
Olhem, só vos digo uma coisa. Fiquei tão aborrecidinha que decidi cortar os pulsos para passar o tempo. Como o homem nunca mais vinha, olhem, fui-me entretendo com aquilo.
Estava o caldo entornado, adormeci e quando acordei, estava dentro de um caixão muito bonito, com folhinhos e tudo, mas aquilo estava fechado e eu não conseguia respirar, e há-de convir que temos que ter em atenção para com os claustrofóbicos, como eu! Que maçada! Ainda por cima já tinha perdido o episódio da novela em que a Maria vai a casa do Pedro dizer-lhe que foi ela quem matou a velhota do 2º andar. Coitadinha!
Ai… tanto silêncio, assim de repente, para quê?