30 julho 2011

Direito a votar

encontrar-te-ás sozinho à porta do delírio,

terás os cognomes da espera e o direito a votar,

comprarei um passe para visitar o museu das tuas obsessões,

saberás fazer-me voltar a horários fixos,

tirarei notas de rodapé com pormenores complicados e referências exaustivas,

farei esboços dos teus sorrisos,

apunhalar-me-ás com ideias universais e alegres

a caminho das coisas particulares e tristes,

sangrarei adjectivos ao modo superlativo, formas retóricas imprecativas

e estruturas paralelísticas,

deixarei as veias dos cárpatos abertas até encherem a tua piscina,

chamarás o segurança e dirás: isto não é hollywood, babe!,

aqui ninguém se suicida com uma overdose de felicidade,

não temos rottweilers a vigiar o sono das crias,

nem personal shopper para tratar as depressões,

terei o tamanho das minhas cicatrizes e as pestanas a fazer tim-tim-tim,

terás fome de mim,

prender-me-ás à cama como nos abraçámos às nossas ilusões,

subirei àquele comboio chamado desejo,

gritarás o meu nome de boca virada para a estação do prazer,

confundir-me-ás com as outras,

serei as outras nesse flutuar branco e veloz,

declinar-te-ei nas conjugações do passado,

desprezarás os volumes que imitam o contorno do meu corpo,

arrumarás num canto do mapa as ruas que levam a nós,

colocarás cartazes em cima dos destroços

enquanto um néon publicitário da boticario executará o papel do ocaso.

dois minutos antes de cair o pano, o director de som escolherá para o nosso fim

uma banda sonora na moda.


Golgona Anghel



...porque tem dias assim, em que as palavras dos outros reflectem tão bem aquilo que anda a deambular aqui dentro, que mais vale nos recostarmos, bebermos um fino bem sacado e nos deliciarmos com o incrivel que é essa coisa da empatia.

22 julho 2011

O Velho Indio

O velho indio estava a falar com o seu neto e contava-lhe:

"o Homem tem dentro dele dois lobos a lutar. Um é um lobo irritado, zangado, violento, egoísta e invejoso, o outro está cheio de amor, carinho, compreensão, respeito, honestidade e compaixão"

e o neto perguntou-lhe:

"Qual dos dois vai ganhar batalha, avô?"

e o velho indio respondeu:

"Aquele que o Homem alimentar."

21 julho 2011

Merda da televisão

há uma caixinha cinzenta cá em casa que nunca pára de funcionar. vou tentando pôr cobro à situação, mas depois a minha mãe já a dormir abre a olhaca e
-Eu estava a ver!
e eu consternada
-Mãe, já acabou há 1hora!
e depois carrego no botãozinho vermelho e vou para a cama, de computador atrás e cigarro enfiado no canto da boca.
acordo, invariavelmente, a meio da noite e aquela caixinha a debitar coisas que não entendo, ligada como se for magia e a minha mãe a dormir outra vez em frente áquela coisa e só me apetece partir aquilo tudo, deixar tudo em frangalhos.
a minha mãe gosta de ver novelas e os programas dos pasteleiros, sempre meia a olhar para aquilo para dentro, porque passados escassos minutos já se rendeu e os olhos fecham quase sem dar conta e depois mudo de canal e comovo-me muito com aqueles filmes antigos cheios de beijos e amores proibidos e olho para o lado, para a minha mãe adormecida e penso que dentro da sua cabeça uma história igualzinha e eu sempre a comover-me muito, a largar umas lágrimazitas com trago salgado e quero partir aquilo tudo outra vez.
que maneira baixa e pedante de controlar as gentes este mundo de celofane, que entretém de meia tigela aquelas pessoas todas a sofrerem tanto que mete dó e as suas vidas ali, escarrapachadinhas na caixa cinzenta para quem as quiser ver, a celebração da loucura, do sangue arrebanhado, das mentiras, do facilitismo com que se embrenham nas nossas cabeças e nos comovem tanto, tanto.
e a minha mãe a dormir em frente à merda da televisão quase a ver, quase a acreditar, quase a viver aquilo, quase a querer partir aquilo tudo também e a não ter forças. a nunca ter forças para destruir aqueles castelos todos no ar. a nunca ter forças para ir para a cama antes que o programa acabe. a nunca ter forças para carregar no botãozinho vermelho e ir para a cama, de alma na mão e a realidade pespegada no peito.
merda da televisão, sempre a prometer aquilo que não vai cumprir, sempre a entorpecer e anestesiar um pouco mais da nossa mente, sempre a falar de sofrimento e medo e amor e lágrimas, sem saber do que fala. nunca sabe do que fala, a merda da televisão.

O Escritor

Há 14 dias que deixaste de aparecer cá em casa.Que deixaste de telefonar e que as tuas meias deixaram de aparecer espalhadas pelo chão como se fossem um bocado de pó que o aspirador não apanhou.
Ninguém pergunta por ti, por isso não falo de ti, mas tem dias em que surges vindo do nada e me toldas as ideias até não restar mais nada, só a tua voz e aquele telefonema
-Lamentamos.o coração deixou simplesmente de bater.
e depois um barulho de fundo que parecia a sineta da escola a chamar a criançada toda para o almoço, e as correrias pelos corredores, e a comida escondida dentro do pão, e a professora sempre aos gritos a ameaçar que fazia queixa de nós ao director, e o director a compactuar connosco, a dar-nos chocolates e a dizer
-Vá, não se portem mal, olhem que para a próxima ficam mesmo de castigo!
e nunca ficávamos.
Juro que não te procuro. Não pesquiso o teu nome na Internet nem percorro a lista de contactos do telemóvel à procura do teu nome. Não revejo as tuas mensagens nem os teus e-mails. E não olho para as fotos porque tu já não existes e dentro desta constatação demolidora convenço-me de que, ainda que as olhasse, tu já lá não estarias. ter-te-ias evaporado e em teu lugar a banca da cozinha, uma árvore, a cadeira vazia de uma esplanada com o mar ao fundo.
-Casquinha, vamos à praia?
a tua voz a principiar e a assomar-se na porta e depois não acontece nada, nem Verão é. Está um frio que não se aguenta e fico com os pés gelados todas as noites. Procuro os teus, mas também os levaste, pode ser que morra com um resfriado e depois
-Lamentamos. o coração deixou simplesmente de bater.
o mistério do teu desaparecimento. Dava um bom titulo para um dos teus livros, talvez para aquele ultimo que andavas a escrever. ainda que nada tenha a ver com a tua morte, com sorte encontro por lá a resposta para o mistério do teu desaparecimento e depois consiga tirar esta coisa que tenho embrulhada no meu peito há 14 dias, quem sabe as tuas meias enroladinhas no chão, quem sabe as folhas que amassavas com fúria e largavas á volta da secretária onde custumavas passar horas, enfiado nos teus cadernos, nas canetas BIC (nunca te percebi a obcessão pelas canetas BIC, quando te ofereciam aquelas muito caras pelas festividades enfiava-las na gaveta e era um ar que se lhes dava).
Custa-me muito que nunca mais te vá ver a cruzar a rua, num extase louco só para me abraçares e a tua voz
-O teu corpo é um livro por escrever
e escrevias nos meus braços, nas minhas pernas,na minha barriga, na minha testa, com o meu baton vermelho que deixei junto ao teu corpo, dentro daquela caixa de madeira em que te enfiaram e que te leva todos os dias um pouco para mais longe de mim.
Sabes, hoje quando cheguei a casa despi-me na entrada e larguei as meias pelo chão, todas enroladinhas como tu fazias, vou deixá-las por lá à espera que o meu escritor regresse, se assome à porta e me diga
-Casquinha, vamos à praia!
ou que pegue nas meias e as ponha na tomba da roupa para lavar.
e eu, que não discuto, não levanto a voz, nem tão pouco perco as estribeiras a ouvir do outro lado
-Lamentamos.o coração deixou simplesmente de bater.
a gritar para o lado de lá
-Não!
e o barulho da sineta da escola a chamar a criançada para as aulas e elas, com muito pesar a resignarem-se, a aceitarem, a subirem a escadaria com a mochila demasiado pesada às costas, e no bolso um papel amarrotado
-És bonita!
e o meu sorriso de menina, tão feliz, tão certa de seres tu o homem da minha vida (e foste. e és.), tão iludida com a nossa eternidade, meu amigo,meu amor, meu escritor.

19 julho 2011

...Pai...

Quis magoar o meu pai muitas vezes, reclamar-lhe o olhar, a atenção, o carinho.
Houve uma altura, disso lembro-me perfeitamente, em que queria estragar-lhe as telas, agarrar nas bisnagas de tinta, espetá-las na paleta de madeira e sujar-lhe aquilo tudo, mas depois apareciam aquelas bolinhas de plástico às cores que ele punha no congelador e eu distraía-me com aquilo, mordia-as com a mesma raiva com que imaginava aquelas tintas todas espalhadas pelo chão até rebentarem e me encherem a boca com aquele liquido asqueroso, que sempre duvidei que fosse água.
E depois as memórias confundem-se-me todas dentro da cabeça e oiço-o dizer:
-Tricas...
e logo a seguir nada. Um nada muito grande, cheio de um silêncio que eu não compreendia e me assustava de morte.
A sua figura alta, esguia, sentado à beira da lareira de perna cruzada, como olhar preso em coisas que nunca fui capaz de deslindar e uma ausencia de som que me gelava os ossos.
Era sempre assim. Até ao jantar. Até aos fins de semana. Até quando eu julgava que o pio se ia soltar.
E esperava. Tentava imitar-lhe a pose muito direita e fazia um esforço mental demasiado grande para uma criança, a tentar pensar em coisas que me conferissem aquele ar inquestionavelmente artistico (bolas de sabão, livros cheios de bonecos, o rapaz mais giro da escola, a matemática a intimidar-me, a bela adormecida à espera do principe).
Tenho noção que talvez esteja a ser injusta. Que lhe esteja a reclamar uma ausência que não fosse assim tão implacável, mas na minha pequena existência aqueles silêncios todos eram simplesmente demasiado ensurdecedores.
Via-o ficar mais triste todos os dias enão conseguia entender porquê. A zangar-se mais, a falar menos (que era a pior maneira que ele tinha de se zangar), a ir cada vez menos vezes ao cinema e gradualmente a deixar de ir passar férias connosco. Ou era problema da praia ou excesso de trabalho, que para mim era o mesmo que dizer que era do cu ou era das calças, ou pior ainda, ou éramos nós ou a minha mãe.
Depois aconteceu o divórcio que eu, na minha pequenez dos 10 anos, já há muito tinha previsto e antecipado, e lembro-me de o meu irmão se ter zangado muito comigo quando eu disse a uma colega da escola que os meus pais, mais dia menos dia, se iam separar.
Ficou tudo muito solitário depois disso. A minha mãe chorava muito. O meu pai não sei, porque a sua dureza de artista sempre lhe toldou as manifestações emotivas.
Compreendi, aos 12 anos, que os anos de silêncio tinham avariado por tempo indeterminado a nossa relação e quando me diziam que eu era muito parecida com ele, eu ficava furiosa.
Foi então que o nosso fosso ficou tão profundo e tal modo irreversivelmente quebrado, que dura até hoje.
Esta coisa que eu não sei o que é, se é silêncio, se são tintas espalhadas pelo ar, se são bolas de sabão ou aquelas cores todas misturadas. Se é do cu ou das calças, ou pior ainda, se sou eu ou a minha mãe.
-"a guerra do dia-a-dia não destrói nada, tudo permanece intocável no sitio onde sabes poder sempre regressar"
Foste tu que me disseste isto, mas eu não acredito, ou se calhar acredito mas não sei como, ou talvez seja do cu ou das calças. E a tua voz
-Tricas...
e depois nada. E depois um silêncio muito grande, ensurdecedor, insuficiente, implacável.

18 julho 2011

Love will tear us apart... again (Versão I)

A velhice nada tem a ver com a idade. Nada tem a ver com as rugas que se vão acumulando no canto dos olhos, com as estrias a rasgarem a pele, com cabelos brancos. Não faz referência à idade dos filhos nem tão pouco se eles sequer existem.
A velhice é um estado da alma, é um contracenso da memória, é um acumular de emoções e sentimentos que eventualmente entram em combustão lenta até explodirem dentro do que temos cá dentro, e se encostarem ao nosso coração.
Não é a quantidade de amor que temos aos outros, ou a forma como lhes dizemos que realmente os amamos. É a quantidade de vezes que amamos que tornam a alma mais cansada, estoirada ao ponto de julgarmos que não aguenta mais, que assim , de facti, não há coração que resista.
São as colecções de desilusões que nos embatem com força e pensamos ter sido atingidos por um camião TIR. São as vezes que acreditamos tão piamente, que o destino se ri de nós.
É a amargura das horas em que achamos que já não resta mais nada e que agora é que se dá o salto para o lado de lá.
É a quantidade de vezes que nos agachamos no canto do quarto, muito quietos, silenciosos que nem ratos, e nos desfazemos em lágrimas. Por vezes, (e é aqui que mais se nos apertam as costelas) já nem sabemos bem se choramos por nós ou por eles, esses pedaços de coisas que vamos construindo no caminho e que no final nem coisas chegam a ser.
Parece inevitável chegar um momento em que, às arrecuas, nos lembramos dos rostos que se foram esfumando ao longo do tempo, e os mais antigos nos parecem certos, tão certos que já nem lhes lembramos o olhar, só a alma e os pedaços que roubámos deles e eles a nós.
É a batalha do cai e levanta que nos destrói. Chegasse mesmo a pensar ficar por lá caídos até que alguém nos venha resgatar da fossa, e voltamos a acreditar que quem nos tirar da fossa vai ser aquele tudo de um todo que queremos do nosso lado, para que não mais tenhamos que lutar, participar em jogos do gato e do rato (que dão pica mas cansam as visceras), para que não tenhamos que procurar em cada rosto alguém que nos sorria e nos dê os bons dias.
É mesmo isso que faz de nós velhos, criaturas ás tantas intratáveis que perderam a força para tudo, até mesmo para cair.
Somos velhos quando o encanto desaparece e julgamos que nada há a fazer acerca disso. Quando nos começamos a apaixonar novamente e já temos em piloto automático que, mais tarde ou mais cedo, aquilo vai ralo abaixo e ficamos de papel higiénico na mão a tapar o buraco com lágrimas e muco. Saímos à noite, bebemos até se nos entorpecer o cérebro e acompanhamos aos gritos Ian Curtis: LOVE WILL TEAR APART...AGAIN!
Depois enrolamo-nos com um gato pingado que tem tanta piada que até se nos amolece o coração e pensamos (totalmente embriagados): This love will not tear me apart again!
...Mas vai...nós é que ainda não sabemos!

13 julho 2011

No supermercado

Ás vezes quando vou ao supermercado, ponho-me a ver as pessoas à minha volta a existir. A existir sim, porque a maioria de nós, quando vai ao supermercado, limita-se a existir, afinal de contas quem é que tem paciência para viver por listas de compras, comparações de preços e talões de desconto?
Fico-lhes a adivinhar a vida, a olhar-lhes os olhos encovados e tristes, as corcundas da alma que transparecem através dos sacos pesados, cabelos no rosto e a lingua entre os dentes, como quem faz um esforço muito grande para ganhar a batalha das asas enroladas dos sacos, que teimam em não se colocarem a jeito para serem seguras por dois dedos a fazerem gancho.
São autómatos, criados para desempenharem uma função e que mais não podem pedir do que a promoção dos frescos ás quintas-feira.
Passeiam-se pelos corredores famintos de emoções que escasseiam nos dias, e é por isso que se entusiasmam muito quando uma tabuleta lhes diz que podem levar três pelo preço de dois ou quando o pack dos iogurtes oferecem um copo cheio de cores fluorescentes e um qualquer boneco lhes acena com um ar muito simpático quase como se dissesse: "Eu vou mudar a tua vida, a partir de hoje tudo vai ser diferente!".
As crianças olham para a secção das goluseimas e acreditam piamente que, se puderem convencer os pais cansados e sempre sem tempo para brincadeiras, a comprar-lhas, serão felizes eternamente, e o tal bonequinho diz-lhes a eles: "Vou ser teu amigo para sempre, nunca mais vais ter que brincar com os legos sozinho!".
As senhoras da caixa têm quase sempre um de dois ares. Ou é uma rapariga muito nova, que nos surpreende que tenha já atingido a maioridade, e que está ali para atingir um qualquer sonho que necessita de auxilio financeiro, ou é uma senhora de meia idade, que já demasiado curvada, se limitou a chegar à conclusão de que há sonhos que têm que ser esquecidos e delegados para um segundo plano que pode bem nem sequer existir.
Uma ida ao supermercado é quase como passar o dia na Segurança Social, mas em que tudo está silencioso (ou silenciado).
É a derradeira guerra do dia-a-dia.
Uma guerra que em boa verdade nunca sabemos como ganhar e que muito poucas vezes conseguimos construir uma estratégia suficientemente forte para que a possamos, efectivamente, ganhar.
Valham-nos os talões, os descontos, as promoções, e todas as outras complicações!

...em branco

Uma página em branco é uma coisa assustadora. Parece ridiculo, mas a infinidade de uma folha de papel em branco arrepia-me até aos ossos, aterroriza-me.
Desde pequena que me recordo de, com urgência, desatar aos rabiscos em qualque área em branco que se me fosse apresentada.
É dificil lidar com o terror de não saber o que fazer com o vazio, como preenchê-lo, dar-lhe um sentido. E a pressão é muito mais que muita.
Primeiro o coração começa a bater rápido, desompassadamente. A respiração torna-se ofegante, os olhos não param de percorrer o espaço e as mãos tremem levemente. O cérebro corre, bamboleia, cavalga...
E depois?
Depois nada, que uma folha em branco é uma figura austera, autoritária, merece respeito e nunca me julgo conseguir corresponder ás suas expectativas.
Eventualmente o sono chega e enche-se de pesadelos em que estou sozinha, sem saber o que fazer com uma folha de papel em branco.

Momentos contados pelo calendário do órgão que chora

No inicio é dificil, há que desfazer com muito cuidado os nós para que não se quebrem os fios. alimenta-se a esperança, demora-se mais tempo nas esquinas, perdemos as chaves de casa muitas vezes e há uma constante nuvem de algo indecifrável que nos envolve. torna tudo ambivalente. as contradições tornam-se uma constante. de manhã custa mais abrir os olhos porque sabemos que tudo estará intocável, parado, suspenso (e precisamos com urgência do milagre, daquele).
Depois começamos a pensar com mais clareza, ou na certeza disso empunhamos da espada de papel e queremos enfrentar o mundo inteiro de uma só vez (secretamente julgamo-nos pequenos, cansados, torcidos pelas horas...). queremos á força destruir todos os elos, queremos lá saber se rasgamos algum pedaço de alma crucial para o amanhã!, ninharias, o cérebro vive de muito menos e o coração é um eterno banana (se se quebra, para que precisamos dele? que uso proveitoso pode ter um órgão que chora?). Chamamos á razão a própria razão. temos a certeza absoluta e irrevogável de que estamos no caminho certo.
O mais fácil é apagar os elos. romper com sorrisos, reprimir desejos. parece simples recorrer ao caminho mais confortável, evitar estradas sinuosas. acima de tudo, é importante que ao longo do processo se vá olhando para o espelho como um estranho, com pena, de preferência.
Só no fim se pode voltar ao incio. só depois de matar o virus, ou de o adormecer (porque ele só morre se quiser), podemos, lentamente, regressar aos dias de sol, aos olhos reconheciveis, aos desejos, á compreensão de que tudo tem o seu tempo e a sua glória. só no fim de toda a parvoice da suposta auto-suficiencia (como se por magia nos tivessem injectado com extra-força!!), se podem voltar a tocar os corpos, para perceber que os olhares ainda se encontram mas que já não se espatam. para saber (e querer afirmá-lo) que ainda vai doer, que aquela musica e aquele sitio, que aquela comida e aquele cheiro, que aquele livro e aquela fotografia, ainda vão mexer com o que de mais sagrado pensamos ter, e que qualquer imprudência pode deitar tudo por terra, mas que no entanto, já se pode tocar no sitio onde se escondem os sentimentos sem queimar. e isso... (suspiro&sorriso) é delicioso.

é certo: não somos de vidro (ou manteiga dependendo da perspectiva) nem de ferro. somos de borracha, podemos partir, mas até lá, esticamos, contorcemos, encolhemos e dançamos sobre o nosso próprio corpo. levamo-nos ao extremo. amamos em demasia. somos de borracha.

Monstros

Como podemos salvar-nos do caos?
Da destruição constante e sucessiva a dar-se violentamente todos os minutos?
Como fugir do medo de nada valha assim tanto a pena?
Obrigarmo-nos a sentir a todo o custo, encher de melancolia o peito, não o deixar esvaziar, ficar a marinar o sofrimento até que as lágrimas cheguem finalmente. Incansáveis. Incontroláveis. Imparáveis. Não permanecer, inchar a alma até não restar outra opção senão rebentar.
Sempre me conheci assim, com a violência com que o meu filho rasgou o meu ventre.
Com a angústia por companhia vezes demais. Com demasiado amor pela deambular pelas ruas, a ouvir musica e a enterrar mais um pouco a estaca n alma. Obrigar-me a sofrer, a recordar sempre a tristeza como uma salvação, a depressão como única forma de permanecer sã, a amargura do dia-a-dia como único meio de ver a realidade acontecer.
Fumo cigarros como se a minha (in)sanidade dependesse disso. Não posso, consigo ou quero deixar de o fazer com pena de deixar adormecido o meu impulsionador de criação.
Temo que a estabilidade e a felicidade pousada no ombro me destrua e estou convencida de que se as aceitar, toda a minha capacidade de escrita se perca. Sou um pesadelo. Um monstro que não gosta de bolachas.
Vivo tudo e nada vivo. Sou o fim e o inicio em simultaneo.
Sou um cérebro hiperactivo com medo de deixar sair os monstros para fora de mim.

06 julho 2011

Cinema

há um mundo fora deste mundo. um mundo que não é meu, nem é teu, é inteiramente nosso. esse mundo existe, eu acredito.
um mundo onde fico sentada á sombra de uma árvore e o silencio impera. é para lá que vou agora mesmo, a cavalo, a voar, em cima de uma tartaruga ou agarrada ás escamas de um peixe.

vou, porque neste mundo de onde me sento em frente ao computador, neste preciso momento, só existe ruido, e esse ruido deixa-me louca.
a minha especie de loucura está á beira da extinção, é feita de outra matéria, de uma qualquer outra gosma que não é manufacturada, moldada, manipulada ou impingida. a minha loucura, a minha praia, a minha margem do rio, é aquela que se entranha nas visceras e deixa á mostra as entranhas esquartejadas, o vómito espalhado pela chão e socos no estômago para amansar a fera, demasiado exausta para seguir em frente, e pela impossibilidade de regressar atrás, se quer á força deixar ficar num sitio bonito onde ainda seja possivel descansar.



e esse sitio não é este. este...bem...este é apenas cinema.

04 julho 2011

Evasão

Tive uma amiga, há uns anos atrás, que desaparecia. De vez em quando, quando menos se esperava, ela simplesmente desaparecia. Ausentava-se de tudo, de todos.
No inicio preocupávamo-nos, abanávamo-la, chamávamo-la quase aos gritos, mas ela não cedia nem um milímetro.
Quando tinha a sensação de que estava a desaparecer ela respirava devagar, acendia um cigarro e no segundo seguinte já nós não a sentíamos. Ela era apenas uma imagem, um corpo semi-inanimado de sorriso pespegado no rosto, os olhos muito abertos e brilhantes e o corpo balançava suavemente, como se fosse qual fosse o lugar para onde havia escapado, estivesse a escutar musica e a gostar.
Um dia perguntei-lhe como era esse sítio e ela não foi capaz de me responder, limitou-se a abanar a cabeça e, com o mesmo sorriso de sempre, disse-me: não é longe, mas também não é perto, é assim como ir e não voltar, como se o mundo se partisse em várias pequenas partículas e todas elas fossem feitas da mais leve, embora nítida, sensação de pertença.
Ela era assim, enigmática, imaginativa. Respondia a tudo com esta quantidade de mistério indecifrável mas ao mesmo tempo tão e apenas sua. Era isso que a definia, estar e ser como ela própria imaginava o mundo. Essa capacidade de se evadir para esse local idílico, feito apenas do que ela própria sabia e sentia ser certo. Qualquer coisa digna de se ver.
Houve um dia em que ela não regressou. Estávamos num jardim e o sol brilhava alto. Estava quente e estávamos perto de um daqueles dias quase perfeitos em que sentimos poder recontar toda a nossa história, porque as oportunidades são infinitas.
Quando demos por ela já nem respirava, estava ali sentada, parada no tempo. O sorriso não se havia desvanecido e o vento começou a soprar ao de leve nos cabelos que lhe envolviam o rosto e de onde se descortinavam de forma intermitente os olhos abertos e como sempre, a brilhar, qual estrela estática no firmamento.
Foi impossível cerrar-lhe os olhos, no velório quiseram fechar-lhe o caixão para que não chocasse as pessoas. Foi um dos dias mais tristes da minha vida, vê-la partir.
Depois tudo se precipitou, as ruas ficaram mais curtas e estreitas, o frio era mais seco e intenso, as conversas tornaram-se forçadas e as noites serviam única e exclusivamente para nos embebedar-nos até à quinta casa.
Toda aquela energia quase cósmica, em que tudo se conjugava numa perfeição quase louca, mas tão real, sincera e honesta havia desaparecido. Eram tristes todos os dias.
Acabei por ficar obcecada pela ideia de descobrir o local da evasão da minha amiga, mas nada ajudava. As drogas deixavam-me simplesmente pedrada e o meu cérebro entorpecido, os sítios para onde viajava eram cheios de coisas estranhas, de pessoas disformes e da voz dela a dizer-me “como se todo o mundo se partisse em pequenas partículas”. Eventualmente acabei por me tornar na maior toxicodependente de que há memoria e com o tempo tudo se esfumou e acabei por perecer num beco escuro de uma qualquer rua deste mundo, sempre em busca do paraíso do olhar da minha amiga.
Esta historia não tem qualquer fundamente ou objectivo, é só e apenas uma historia acerca de alguém que me ensinou que podemos condensar tantos mundos e tantas perfeições (ou imagens que criamos delas) dentro de nós que acabamos por nos perder dentro delas. Elas tornam-se a nossa própria essência.
Eu não sei que mundo era esse para o qual a minha amiga se evadia, se calhar, e o mais provável, era que ela simplesmente fosse diferente de todos nós, que talvez devesse ter sido medicada, que alguém, nalgum dia, talvez a devesse ter obrigado a sair daquele transe e a regressar para junto de nós, que éramos reais e a apreciávamos tanto. Mas para que serviria isso, toda essa violência contra a sua própria forma de ser feliz? Estaríamos a criar um monstro ou alguém eternamente deprimido caso a tivéssemos puxado desse sonho que se tornou a sua vida? Nunca o saberemos, mas a minha convicção é que o estaríamos por certo a fazer.
Talvez, e só talvez, se eu tivesse buscado a minha própria forma de escapar, o meu paraíso, o meu local de encontro, pudesse ter encontrado um jardim cheio de flores, sol a queimar a pele e uma cascata ao fundo, com violinos sempre a tocar ao longe, e não uma rua fria e suja, onde quis á força tornar meu o paraíso de outra pessoa e acabei por encontrar uma agulha espetada no braço, espuma a sair-me da boca e a voz de um homem a dizer: então boneca? Vamos brincar?, enquanto eu ainda tive força para abrir os olhos e ver-lhe a língua, qual labareda, a percorrer-lhe os lábios e os dentes podres.
Talvez eu também pudesse ter morrido com um sorriso nos lábios e os olhos tão abertos e brilhantes que podiam certamente engolir o mundo inteiro de uma única assentada.

01 julho 2011

Estupidificação Consentida

A noite já se pôs por trás da minha janela e o frenesim do dia acaba por tranquilizar. Toma agora conta da cidade uma calma que não parece ter fim e que promete a eternidade dos tempos. Lá fora tudo está, aparentemente, adormecido, nada faz compreender a loucura que habita em cada casa. Em todos os cantos, em todas as ruas, em todas as televisões espreita o monstro, a “so called” civilização, no entanto a vida não deixa de sobreviver e o ar revolve-se em espirais em todos os recantos do planeta.
Não há nada que faça prever que amanhã tudo se reiniciará, transformará, renascerá tomando a mesma forma que teve hoje ou ontem e que continuará a ter daqui a um mês.
Não basta dormir em camas refeitas dia após dia, semana após semana numa correria infernal que não termina nunca. Os lençóis de há um mês já estarão devidamente lavados e engomados, arrumados numa qualquer gaveta, mas o cheiro da podridão não desaparecerá nunca. Os vestígios das lágrimas, das mãos, do suor, dos sorrisos, das ansiedades, da dor, do sexo…nunca será desvendado o pudor que esconde cada olhar, cada julgamento, seja qual for o veredicto seremos todos comidos e consumidos consecutivamente, uns atrás dos outros sem nada fazermos para o impedir. E não será, de facto, mais confortável este papel de espectadores passivos que assumimos em frente ao televisor?
E sobreviveremos, ou a noite será um dia tão funda, escura e fria que tudo se desconjuntará, desistirá de tudo para se submeter ao seu triste e esquecido desígnio, o do eterno silêncio e vazio?
Entretanto tudo se vai compondo, tudo se vai remediando, bem ou mal, aqui e ali vamos entretendo os nossos corpos e mentes com aquilo que nos dão, com aquilo que nos deixam ter, com aquilo que achamos que escolhemos, com aquilo que nos impõem numa estupidificação consentida, estremecida, mas nunca, em momento algum questionada.