21 dezembro 2012

Muito, meu amor

Meu amor, sei hoje a falta que me fizeste a vida inteira, sei que a solidão e a angustia que entravam em mim como uma bala inexplicável, era essa falta que me fazias, a tua ausência nos meus dias.

Houve alguém sábio que disse que o amor é instantâneo e absoluto, que de repente aquela pessoa passa a ser nossa desde a infância, que mesmo que não tivesse estado lá, passa a estar, e tu sempre estiveste.

Compreendo agora, só agora, ainda que não tarde demais, que o sentido que não encontrava no mundo era a memória de ti inscrita de forma camuflada na minha vida. A memória que faltava ser concretizada.

Era possível que passasse a vida inteira sem te encontrar em esquina alguma, mas agora que estás aqui, tenho a mais certa certeza de que aquela sombra na parede, sempre ao meu lado, eras tu a cuidares de mim até que fosse a hora certa para que passasses a existir deste lado do sonho. E a hora certa não é uma hora qualquer, insípida e oca como as outras, a hora certa não é quando o ponteiro bate, é no momento exato em que ele se sustém e não acontece nada, só um silêncio enorme e o tempo parado, sereno. É urgente esse exato momento para que aquilo que nos aconteceu, aconteça: roubarmos para dentro de nós a alquimia que deriva nesse espaço, que dura apenas um instante, mas que encerra nela tudo aquilo que uma vez solto, há-de ser infinito.

Tu és esse infinito que eu fui capaz de roubar para dentro de mim, e nesse infinito está tudo aquilo que já vivi e tudo aquilo que há-de vir. Nesse infinito estamos nós, meu amor.

Começo hoje, por fim, o meu manifesto à vida, à nossa.

Detenho-me e sei-a longe, agarrada a um pórtico de uma porta que eu não sabia se se ia voltar a abrir. Reconheço-lhe os veios profundos, a paleta de cores que percorre todos os tipos de castanho e rasga nalgumas alturas o preto profundo e o cinzento difuso. Encontro-me de pulso pousado na maçaneta fria, de sorriso enfiado naquilo que eu não sabia estar atrás da porta. Torço por fim a bola de metal e lá estás tu, com a tua vida pousada na minha. Respiro fundo e sei-me finalmente em casa, em ti, meu amor.

Ouço nitidamente os martelos que batem furiosos nos nossos peitos, que sussurram em uníssono: …meu amor…meu amor…meu amor…

Fizeste-me tanta falta, a falta que só sabemos reconhecer quando descobrimos a alavanca que subitamente e sem porquês nos põe o mundo a girar na direção certa, a caminho não um do outro, mas um com o outro, juntos, de sempre e para sempre.

28 novembro 2012

Inevitabilidades

Há pessoas que nos mordem. Já o disse anteriormente, não me repito por esquecimento, sei como uma exatidão quase precisa tudo aquilo que escrevi, pensei ou disse. Repito-o por esta constatação me surpreender tanto, ainda que saiba da sua mais profunda verdade faz anos, vidas inteiras.

Quando ias a subir as escadas, perdido de bêbedo, agarrado ao corrimão como quem se agarra a uma bengala (certo de que se tivesse mesmo de ser cairias estatelado degrau a baixo de qualquer modo, com ou sem corrimão), tive a certeza de que me ias morder de forma irremediável a existência para sempre. É coisa que não me dói, na altura doeu muito, custou-me saber-me com a tua dentada agarrada ao meu corpo por um período de tempo tão longo, sobre o qual na realidade nenhum de nós sabe coisa nenhuma. Eternidade, o que é isso da eternidade? O para sempre já é demasiado tempo, mas a eternidade soa a longe demais, soa a impossível, a intocável, a uma ideia tão difusa e confusa que lhe perdemos o fio à meada nos primeiros momentos e desistimos quase instantaneamente.

Na fracção de segundo em que esta certeza passou a fazer parte de mim posso jurar que todo o mundo estremeceu, dos mares mais profundos às cavernas mais recônditas, dos centros cosmopolitas mais fervilhantes às aldeias esquecidas mais para lá do fim do mundo. E eu dentro de todos estes sítios, a tremer com eles, a ter medo mas a sentir-me humildemente feliz por ter o privilégio de estar acorrentada incondicionalmente a alguém. O privilégio das coisas que sabemos amar desmedidamente, e das outras, as que sabemos que nos amam na mesma exata medida.

Foi perdido de bêbedo que soube que te amava assim, sem porquês e sem ter sequer opção de escolha. Foste a maior inevitabilidade da minha vida, e a tua dentada, eventualmente, deixou de doer.

Foi um golpe duro quando percebemos que o universo, aos poucos, nos estava a separar, apesar de querermos à força entrelaçar os nossos dedos, colá-los se fosse preciso, mas não houve incondicionalismo que nos salva-se do caos e da destruição a que nos submetíamos. A eternidade física tornou-se miragem à mesma velocidade com que, ainda que nos soubéssemos a pessoa mais certa um do outro, explodíamos dentro do peito um do outro.

No fundo sabemos que continuamos a olhar-mo-nos longamente e a reconhecer-mo-nos o único futuro realmente possível. Daqui a incontáveis anos, depois de nos termos deitado com tantas outras pessoas e de lhes termos dito que lhes amávamos as almas, vamos ainda estar certos de que afinal de contas o amor é tudo o que chega.

Há pessoas que nos mordem e tu és, ainda, a maior inevitabilidade da minha vida.

20 novembro 2012

Cedência de passagem

Eu não sei. Eu sei lá. Não tenho a certeza daquilo que sei, ultimamente está tudo tão confuso. Confuso de uma confusão ruidosa, daquela que irrita, daquela que depois de me aperceber que é confusa consegue por cima disso tudo ficar ainda mais complexa, cheia de raízes quadradas e cruzamentos mal sinalizados. Impera a regra geral da cedência de passagem, que é como quem diz tudo ao molho e fé em… fé em quem?!

- Com licença minha senhora, que eu estou carregado de sacos…

- Não lhe dou licença porque eu só tenho um saco, mas o meu é muito mais pesado que o seu!

- Mas eu tenho alguma idade e já me custa a caminhar…

- E eu posso ter menos idade mas ainda ontem caí e tenho o joelho todo espapaçado…

Amanhe-se quem puder, como puder e se puder. Se não puder temos pena, daquela pena grande mas tão pequenina ao mesmo tempo, aquela que é mesquinha e feia e pedante e dá vómitos e que deixa tudo em volta a cheirar a vómito e lágrimas e suco gástrico. Que confusão, eu sei lá. E alguém sabe? Se ninguém sabe então é que está tudo perdido, mas… e se alguém sabe? Porque é que sabe? Pactos com o diabo, sacrifícios de gatos em noites de lua cheia, conspirações com o governo, kryptonite…?

- olhe lá, mas porque é que se quer levantar para me oferecer o seu lugar no autocarro?

- Porque eu posso muito bem fazer a viagem em pé…

- Está a chamar-me velho?

- Claro que não, ora essa…

- Então? Há alguma pastilha elástica colada no assento? Ou pisou merda e agora esse lugar está infestado com o cheiro?

Tudo é suspeito. Absolutamente tudo. Não adianta negar que uma pessoa sai de casa e pensa logo em fugir escadas a cima novamente, só para não sentir o cheiro, só para não escutar as vozes, só para não ser obrigado a olhar de frente aquelas caras todas já difusas entre elas, todas já meias a desaparecer, todas elas já sem lábios mas cheias de dentes, já sem pálpebras mas cheias de lágrimas, já sem voz mas cheias de ideias pedantes a escorrer cérebro fora. Um passo em falso e já só aquilo que faz sentido é que não exista sentido algum, porque é impossível que se descubra um sentido no meio de lama e areias movediças e vísceras para fora.

Eu não. Eu sei lá. Não ter motivos para ficar parece um bom motivo para partir. E fico assim, ainda crente, a pensar se existirão motivos, e quais serão eles, que me façam ainda, só por enquanto, querer ficar.  

12 novembro 2012

Não quero saber o teu nome

- Olá

- Olá

- Posso pagar-te um fino, e em troca dás-me um cigarro?

- Sabes que isso não é uma troca justa, não sabes?

- Porquê?

- Porque com o dinheiro de um fino quase podias comprar um maço de cigarros. Quem sai lesado és tu.

- Mas aqui não vendem cigarros, o que por si só já uma estupidez uma vez que se podem fumá-los, mas vendem finos, que é a única coisa que te posso dar em troca de um desses cigarros que tens no bolso.

- Se tivesses começado por mo pedires eu tinha-to dado… agora vais mesmo ter de me pagar um fino.

- Como te chamas?

- Que é que isso importa? O meu nome?

- Fazemos assim, eu digo-te o meu nome em troca do teu…

- Eu não quero saber o teu nome…

- Porquê?!

- Escuta. Tu sabes, e eu sei, que eventualmente daqui a umas horas vamos estar a foder, certo?

- Hm… sim… talvez…

- Ok. Então não quero saber o teu nome.

- Não faria mais sentido que, uma vez que vamos estar a foder daqui a umas horas, tu soubesses ao menos o meu nome?

- Preferia que me desses a tua morada, ou que me dissesses uma imbecilidade qualquer sobre a tua resistência ou falta dela, à dor, ou que numero calças ou… qualquer outra coisa. Mas não quero saber o teu nome. Tu e eu não vamos ser namorados, não nos vamos conhecer como deve de ser, eu não vou conhecer a tua família nem tu a minha, não vamos partilhar momentos além daquele para que nos estamos a propor e queremos, não vamos envelhecer juntos, nem chorar no funeral um do outro. Vamos dar uma queca, se ela for boa até podemos vir a repeti-la. Podemos julgar que até era bom tomarmos um café um dia desses só para não nos pesar na consciência que fomos para a cama com um estranho, porque julgamos que depois desse café até podemos não nos voltarmos a ver, mas enfim, ao menos já não somos estranhos. Por isso não, não quero saber o teu nome. Se me disseres o teu nome vais passar a ser alguém, a ter uma identidade. Na minha cabeça vais ser uma pessoa, e uma pessoa tem sempre uma história, tem sempre sonhos e planos. Se tiveres essa história, como imagino que tenhas depois de me dizeres o teu nome, também vais ter cicatrizes, e dores antigas, e vais ter episódios engraçados na tua vida dos quais me vou rir, e outros com menos piada que provavelmente me vão fazer chorar. Depois disto tudo tu já vais fazer parte da minha história e eu da tua, tu já vais viver em mim e eu em ti. E isso estraga sempre tudo. Se dermos umas quecas sem sabermos absolutamente nada um do outro é simples e é fácil, somos corpos, servimo-nos para um propósito e já está. Não chegamos nunca a representar um risco um para o outro. Dito isto, entendes porque não quero saber o teu nome?

- Dito isso, entendes porque quero que saibas o meu nome? E porque quero, decididamente, saber o teu?

- Toma o cigarro. Obrigada pelo fino.

- Onde vais?

- Embora.

- Porquê?

- Porque o meu nome é Beatriz e eu não tenho mais do que um cigarro para te dar. E não, não quero que me digas o teu nome. Adeus.

09 novembro 2012

“…and then so clear”

Tenho muitas saudades em mim, de vários tipos, de vários tempos. Surpreende-me sempre que tenha saudades de vidas que não me pertencem, que nunca foram minhas, que residem na palma da mão ou num rolo fotográfico de outra pessoa. Mas tenho.

Também tenho saudades de mim, daquilo que eu nunca fui mas que gostava de ter sido. Dos planos e dos sonhos, das pessoas que eu tinha a certeza de irem cruzar-se comigo ao longo do caminho, mas que nunca o fizeram, talvez nunca tenham tido tempo para isso. E não posso, quero dizer, não sou capaz de as perdoar por isso. Eu que as imaginei tantas vezes, eu que cheguei a criar diálogos entre nós, que lhes toquei, que soube com uma exactidão doentia a profundidade de cara poro, que lhes dei cores impossíveis às pupilas, que descobri os acordes perfeitos para lhes servirem de voz. E depois silêncio, solidão, cruzamento errado, um semáforo a mais.

Depois elas a passarem por mim e nós sem nos vermos, a esquecermo-nos de que estávamos destinados a mergulhar na vida uns dos outros.

Esqueço-me delas, dessas pessoas, na maioria dos dias. Sirvo-me e desfruto daquelas que tenho, das que não se enganaram no caminho e vieram parar aos meus dias e eu aos delas. Os dias passam-se sem grande agonia, mas a saudade bate-me mais forte quando, por algum motivo, uma das criaturas que já está no meu caminho me olha de modo diferente e, por exemplo, a pupila me parece de um negro impossível, como o que imaginei, um dia, para uma dessas, as perdidas, e penso:

[será que esta pele que aqui está a debitar-me horas e emoções e rebuliços, não terá sido imaginada por outra pessoa qualquer? Será que houve uma troca e este cheiro devia estar em tumultos vida a fora com outra, a que lhe terá inventado esta cor, quase como a minha, mas não a mesma, não a mesma?]

E fico triste de repente. Saudades de fogo e de mar e de vozes. E se estiver alguém assim, melancólico, como eu? E se a minha pessoa estiver sozinha, perdida, sem que ninguém lhe entenda o verde-avermelhado dos olhos, e se tiver sido ostracizada por ter uma melodia em lugar do voz, e se o seu toque for tão doce que ninguém já o suporte, e se o seu riso for tão alto que já não existam ouvidos que o ouçam? E tenho saudades das conversas que não tive com ela até ser dia, e das musicas que não foram feitas para que as escutássemos juntas, e das estradas que foram alcatroadas por já não existir ninguém que goste, como nós, de terra-batida.

E fico ainda mais triste, ainda mais de repente. E os olhos de um negro quase profundo que tenho pousados à minha frente me olham confusos, por me saberem não ali mas noutro sitio qualquer, assim, sem aviso, sem explicação. E a pele que é doce, mas não tão doce, se atravessa na minha e encontra reticencias, e recuos, e estranheza, por saber que aquele não era o toque do qual tenho saudades. E a lágrima cristalina, mas não tão cristalina, que sabe, tem a mais certa certeza de que o que sinto são saudades, lhe escorre até aos lábios que se entreabrem e me questionam:

- De que tens saudades?

e eu, tão triste, sou só capaz de responder:

- De mim, de mim...

05 novembro 2012

Eu, o Velho, e a 149

Rugas, pupila sofrida, triste, gasta. Descendo, boca sem sorriso, dura, fechada, a julgar que já não tem nada para dizer. As mãos, compridas, seguram uma bengala que não sustém o peso do corpo, existe não pelo homem, mas é o homem que existe por ela, para ser amparado ou para, ao menos, sair para a estrada sabendo que se uma pedra de colocar no caminho, ele terá onde se suportar.
Está triste, tão desoladoramente triste. Nos olhos pequenos ficam presas as paisagens que cavalgam à janela do autocarro, demasiado barulhento

(ou será o peito que bate mais forte?)

adivinham-se-lhe muitos anos na pele enrugada do pescoço, abraços e dedos enrolados no sitio onde já deve ter existido cabelo e onde repousa agora um chapéu simples, de aba, preto com uma fita preta. Imagino-lhe os abraços na base do pescoço porque é alto, ainda que a vida lhe pese visivelmente nas costas e esteja mais curvado que uma árvore no topo e limite de precipício, e as mulheres da sua vida (terão sido muitas? Ou terá tido espaço para um único mas eterno amor?), os filhos (existirão?), as netas de cabelo muito negro encaracolado teriam de esticar muito os pés, colocarem-se em posição de bailarina, apoiar os braços nos seus ombros e abraçar-lhe o pescoço para lhe dar um beijo.

O autocarro pára de repente e nenhum de nós estava à espera disso, o nosso corpo desequilibra-se de forma deselegante para a frente. Eu seguro-me instantaneamente no banco à minha frente, tenho mais força, mais reflexos, ele quase que bate com a cabeça na janela, mas a bengala está lá e serve finalmente para lhe amparar o embate.
Tenho aqueles anos todos que ele carrega em mim, sinto-me ele, estou cansada, quebrada, quero que acabe rápido e que seja durante o sono, recuso-me a ir para um lar onde não reconheço ninguém e os lençóis me fazem comichão, a almofada não tem a altura certa e querem obrigar-me a enfeitar a árvore de natal todos os anos. Está sempre frio e eu nunca tenho sono, fico a ver a noite a passar nos ponteiros do relógio na mesinha de cabeceira e os pés estão sempre gelados. A comida não me sabe bem, é raro ter fome. Não tenho paciência para os antigos amigos nem para o jogo da bisca, o café sabe-me mal e os meus ossos doem-me quando o tempo ameaça mudar.
Eu sou ele e apetece-me chorar. Quando chega à minha paragem, antes da dele, encontro os olhos dele e saio rápido. Ouço as portas fecharem atrás de mim e fico ali quieta, sem ser capaz de me mover durante muito tempo, um tempo grande, um tempo que me parece infinito.
Sinto-me pesada, pesada, cada vez mais cansada. Entro no elevador e encontro-o no espelho. Lá está ele, o velho do autocarro, a escorrer-me cara a baixo, e eu, ainda que devastada, recuso-me a limpá-lo do meu rosto, quero recordá-lo para sempre. Quero levá-lo dentro de mim. Gostava que ele tivesse ficado a saber que dali em diante seriam os olhos dele a minha bengala.

30 outubro 2012

Corações nos sítios certos

Naquele dia, gostava de ter gostado de ti, de ter tido tempo para isso, ou tempo ou coragem. A memória de como as coisas se passam vai ficando gasta, mas às tantas foi um pouco dos dois: tempo e coragem.

Estavas sentado no banco à minha frente do comboio e tinhas os olhos mais tristes que vi até hoje, cabisbaixos e com olheiras profundas. Adivinhei-te quase lágrimas atrás das pálpebras, quis aproximar a minha mãos dos teus olhos e roubar-tas para os meus dedos, na minha cabeça imaginei-me a fazê-lo durante todos os minutos que demorou a viagem.

Não sei se o tempo tem alguma importância, todos os dias me convenço mais de que não. Aquele fim de dia podiam ter sido dias inteiros ou anos, que eu teria ficado ali, sentada à tua frente a pensar que gostava de ter gostado de ti. A saber-te fácil de gostar. Tinhas o cabelo grande e farto, desgrenhado, com algumas madeixas sempre a pender para a frente dos olhos, escuro como a noite, e por trás delas, das madeixas, lá estavam os teus olhos cheios daquela tristeza toda sem nome e talvez por isso maior ainda.

As pessoas são muito melhores no abstracto, sentir-se amor por elas antes que elas se encostem a nós, antes de as escutarmos e que a voz fique presa dentro. Podem ainda ser tudo aquilo que queremos, por baixo da roupa podemos desenhar-lhes o corpo, as formas, o toque, dentro do peito podemos construir-lhes comoções, duvidas, sonhos e com alguma imaginação, uma vida inteira. São seres quase perfeitos as pessoas que não se conhece, as que se me prendem à ponta dos dedos e me fazem suspirar, e comover, em dias como aquele, chegam mesmo a fazer-me chorar. E tenho pena, tanta pena de não ter gostado dele, de ter gostado de outras pessoas no lugar dele, de ter colocado um sem numero de esperanças em almas que de mim pouco queriam, ou o que queriam parecia-me pouco.

Já sobram poucas pessoas, demasiado poucas. É como se uma peste se tivesse instalado no mundo e a maioria não tivesse resistido. São já muito poucas e a vida vai ficando todos os dias mais vazia, mais solitária. Fazem-me falta as pessoas que têm o coração no sitio certo, e ele, tenho a certeza, tinha o coração no sitio mais certo: na vida inteira.

28 outubro 2012

Chuva

É Outono. Outubro, porque está a chover e cheira a terra molhada. Se não fosse a chuva e o cheiro podia ser Primavera, ou outra estação qualquer, mas não. È Outono. Outubro.

Tenho que ir supermercado e não me apetece. Quero ficar sentada a olhar para a janela cheia de gotas que se multiplicam com violência, a ouvir só o barulho da chuva e dos carros que aceleram lá fora. Apetece-me uma hora só disto. De nada. De coisa nenhuma. Pensando bem apetece-me um par de horas, ou mais ainda, ou uma semana inteira. Por mim podia não parar de chover durante o resto do ano, a vida inteira, e eu, feliz, ficava aqui sentada sem mexer um músculo, a esvaziar a cabeça para dentro da água que cai aos potes do céu. Adivinho-a quase tão cheia quanto eu. Tão exausta. Tão revoltada.

Tenho um cansaço enorme nas pernas e não fiz absolutamente nada. Quero dizer, ontem saí, andei muito, conheci um gato pingado cheio de piada e fui para a cama com ele, acordei estremunhada numa casa que não reconheci e corri escadas a baixo depois de lançar um “Bom dia, desculpa estou com pressa, ficaste com o meu numero, não ficaste?” e receber um grunhido que não fui capaz de identificar se significava anuição ou confusão. Não quis saber. Quis fugir. E agora estou aqui, fugitiva. O peso nas pernas pode ter sido de qualquer um dos fatores acima mencionados, incluindo o sexo, que se bem me recordo foi bom, nada de espetacular (afinal de contas não se pode esperar muito de uma queca repentina que veio sabe-se lá de onde e foi parar não sei a que sitio), mas bom.

Sinto-me cansada e deve ser da idade. Mas eu não tenho assim tanta idade, na verdade tenho pouca, 10 mais 10 mais 5 é pouco, mas tenho quase a certeza que o meu cansaço é da idade, se calhar os anos pesam-me no corpo mais do que às outras pessoas. Se calhar sou como os gatos e os cães, que quando têm 10 mais 6 já são idosos, e é uma sorte durarem outros mais 6. Deve ser isso.

Depois disso tudo, do meu desfasamento relativamente a todas as outras pessoas acho que tenho um grave problema relacional, digo, no que respeita precisamente às outras pessoas. Elas cansam-me, todas, sem exceção. Gosto muito de algumas, sei que sinto amor puro por outras, mas fora estas, detesto de um ódio de morte todas as outras. Tenho-lhes pena, ou nojo, ou eu sei lá o quê. Também já pensei que as amo, e é por isso que as detesto, por me fazerem sentir estas coisas por elas. Isto tudo também me cansa.

E depois, por cima (ou par baixo?) dessas pessoas pelas quais nutro algum sentimento mais profundo de forma negativa ou positiva, existem as outras pelas quais sinto uma indiferença extremosa. Bem sei que há alturas em que a indiferença também é um caminho, tão respeitável como qualquer outro, sublinho, mas essa indiferença faz com que incorra de forma constante em vinganças contra mim (ou às outras acima referidas) nestes indivíduos que me são tão indiferentes quanto um molho de alface na secção dos frescos do supermercado (e por falar nisso, não me posso esquecer que tenho de lá ir). Foi o caso do gato pingado da noite passada, eu sei lá às tantas até é uma ótima pessoa, tanto quanto sei pode bem ser o homem da minha vida, mas deitar-me com ele foi tão simples, básico e animal quanto sentir o estomago roncar de fome quando estou horas a mais sem comer. E isto é de um pedantismo atroz. Aquela coisa enfadonha e desesperada de tentar encontrar em todos os rostos que nos olham alguém a quem queremos desejar “boa noite”, quem cuide de nós, de quem queiramos cuidar. Mas depois nunca passa de uma ideia, a ideia da paixão. Perdem piada, consistência. Apesar do desapego já tive, e isto juro a pés juntos, alturas em que me forcei a olhar essas criaturas como humanos, gente com mais gente dentro, como eu, como as pessoas que eu amo, mas que não sabia que ia amar antes de as conhecer, e porque não dar uma oportunidade? Porque não acreditar? Eu sei lá, porque não contornar a ideia e torna-la real? Mas entretanto fica tudo confuso, muito confuso, demasiado confuso. Ninguém quer dar satisfações de coisa nenhuma, ninguém quer ter de provar nada. Isso também deve ser da idade, tenho a sensação que a determinada altura passasse a julgar que já não há nada a provar, que tudo aquilo que tínhamos que mostrar já mostrámos e quem viu, viu, quem não viu, bom, azar, tivesse visto. E seguindo esta ordem de ideias, se essa pessoa não viu, não estava lá, é porque não interessa, e não é agora, depois de tantos frascos partidos no chão, de tantas gotas de chuva a baterem no vidro, que vamos ter de começar novamente e sermos um livro. È cansativo começar a contar a história toda outra vez, e de cada vez de se tem de a recontar, existem mais dias, mais anos, mais acontecimentos que me mudaram e que por isso mudam tudo o resto. Quando começo a pensar nisto, que vou ter de ser menina outra vez, que vou ter de reviver tudo novamente, então perco as forças e apetece-me ficar só assim, quieta, sentada nesta cadeira a ver as gotas da chuva baterem violentamente na vidraça.

Nunca será mais fácil descer as escadas de um prédio a correr para fugir áquilo que deixei pendurado no colchão, mas pelo menos será mais certo que aquela pessoa, aquele corpo que de certeza tem uma alma lá dentro, nunca me pedirá satisfações, nunca me vai questionar os motivos, nunca me vai magoar porque não sabe onde o fazer nem os pontos chaves a pressionar, e em última instancia não, eu também nunca lhe irei infligir nenhum tipo de dor, nunca serei a sua desculpa para que chore ou se entristeça.

Estou cansada e isto deve ser da idade. E de repente, assim só de repente, sinto-me vazia e sozinha. Podia chover para sempre e eu aqui, a ver as gotas baterem como martelos no vidro

(espera, deixou de chover… isto tem de ser reformulado, o que é que bate, afinal de contas?)

Podia chover para sempre e eu aqui, a sentir o medo bater como martelos no peito.

26 outubro 2012

O Gaspar era um excêntrico

O Gaspar era um excêntrico. Eu tinha muito medo dele, não pela excentricidade, mas por aquilo que ela me fazia. Explico: eu tinha muito medo do Gaspar porque sempre que o Gaspar regressava eu me apaixonava por ele. Era coisa para durar uma semana, um mês no máximo. Depois levava-o ao aeroporto, caminhava distraidamente junto à mochila encaixada nas costas dele, e ele ia embora. Ficava longe sempre muito tempo. Os primeiros dias sem ele eram tortuosos, custava-me a habituar-me a mim sem ele, que era uma coisa totalmente distinta de mim com ele.

Também nunca gostei muito do que eu era com ele, mas pior era sem ele (pelo menos nos primeiros dias). Bebíamos sempre demais, largava-mos gargalhadas muito altas, estávamos sempre ou a correr ou então tudo se passava em câmara quase lenta. Nada era certo nem previsível, não era sequer possível fazer planos com o Gaspar, a coisa que ele mais detestava eram planos, reservas, marcações prévias. Quando queríamos ir ao teatro era na hora, porque o cartaz era bonito, porque era barato, porque ainda existiam lugares vagos.

Houve uma dia, disso lembro-me nitidamente em que ele me disse

- E se eu ficar?

- O quê?

- E se eu ficar?

- Ficares onde?

- Aqui. Contigo.

- Como assim? Ficas sempre aqui comigo…

- Não. Não estás a perceber. Se eu ficar mesmo, se não voltar a ir embora. Que achas?

A isto respondi-lhe com um estalo que ecoou durante um tempo que me pareceu imenso. Chorei muito e perguntei-lhe se quem saia imediatamente era eu ou ele, mas que alguém tinha que sair mais que não fosse um par de horas. Saí eu. Contava que quando regressasse ele já lá não estivesse mas estava, precisamente na mesma posição em que o tinha deixado.

- Olha lá, que merda foi aquela?! Estás louca?!

Abracei-o com força e disse-lhe baixinho:

- Nem penses em ficar. Se ficares desapareces, deixas de ser tu, e eu quero-te a ti, assim, vadio. É disso que é feito o meu amor por ti. Se ficares, garanto-te, é a nossa sentença de morte.

No dia seguinte ele voltou a partir. Acompanhei-o ao aeroporto, caminhei distraidamente junto à mochila encaixada nas suas costas e regressei a casa cheia dele, do cheiro dele e da certeza de que a semana seguinte ia ser excruciante. E foi. E é.

O avião do Gaspar despenhou-se ainda em solo português, ligaram para mim porque era o único numero de contacto que ele tinha. Tive de ir reconhecer o corpo, ou aquilo que eles chamaram de corpo, que na realidade era um amontoado de carne e sangue e ossos absolutamente irreconhecíveis. No dia a seguir ao funeral sonhei com ele, e em todos os dias seguintes. Ontem, passados quatro meses do acidente, ele falou comigo no sono

- Afinal sempre fiquei. Vês?! E não desapareci, não mudei, assinei a minha sentença de morte sem assinar a nossa. Afinal sempre fiquei.

e piscou-me o olho no exacto momento em que acordei. Passei o resto da madrugada a rir-me, e a chorar a rir, ou a rir a chorar, ou tudo isso misturado.

- Gaspar, seu desgraçado, afinal sempre ficaste.

O Gaspar era um excêntrico, e eu tinha muito medo dele: fazia-me feliz como é já impossível ser-se feliz. Nunca fizemos planos nenhuns, nem o nosso fim foi planeado. Aliás, o nosso fim não aconteceu, aconteceu-nos, e essa foi a única forma de fazermos o nosso amor valer a pena. O termos sido condenados, no final de contas a ficar, porque na realidade para que outro sitio poderíamos ter ido? Nenhum lugar no mundo seria seguro para o nosso amor vadio. Só a morte Gaspar. Só a morte.

24 outubro 2012

Loucura dentro

Tenho a certeza de que sofro de uma doença terminal. Sei que pouco a pouco a minha cabeça se adormenta, tenho dias em que não sou capaz de sair desse estado catatónico e o pior é que isso me deixa extasiada. Não movo um único musculo e isso dá ao meu cérebro total liberdade, borbulha e luta, e grita e chora, e ri-se desmedidamente. Sei que estou a enlouquecer, não que isso me incomode grandemente, mas existem ainda uma série de coisas que gostava de fazer e julgo que a minha insanidade, uma vez estabelecida, não mas vai deixar completar. Entristece-me, é certo, mas vejo os carros fumegarem, e as pessoas a caminharem, os cafés a abrirem portas pela manhã e à noite a fechá-las, as luzes dos semáforos passam vezes sem conta de vermelho para verde, de verde para amarelo, e depois regressam, impenetráveis ao vermelho. Tudo isto me incomoda, claro. Mais que me incomodar, enerva-me. Quero dizer ainda um sem numero de palavras, sentir na palma dos pés texturas que nunca tive coragem de sentir, beijar peles que nunca toquei sequer, abraçar animais que me metem medo, entrar em casas abandonadas e adivinhar-lhes a vida pendurada nas cortinas velhas e rasgadas que alguém deixou para trás. Mas o problema, além da minha doença, é que de todas estas coisas que ainda quero fazer, a nenhuma faz justiça o movimento frenético deste mundo. Lógico que também acho que a minha aversão e nojo pelo mundo também se deve à minha condição. Talvez uma coisa não se dissocie da outra e estou condenada a este ciclo pútrido, que fede a saliva e a suor, e a gosma e a merda.

Tenho a certeza de que estou a morrer. No silêncio, se o escutar (e tenho-o escutado) sou capaz de catalogar na perfeição quais os órgãos do meu corpo que vão dar de si em primeiro lugar. Sinto-os respirarem ofegantes, alguns já só gemem, outros ainda se dão ao trabalho de berrar, mas todos eles, um por um, qual animal a entrar na arca de Noé, se vai desligar permanentemente. E eu, que os tenho dentro e não os posso arrancar para fora de mim, vou ter que assistir à morte gradual e suplicante daquilo que faz de mim um corpo movente, quente, funcional. Isto também me entristece. Não me enerva, só me entristece.

Já não quero nada disto. Se pensar com alguma clareza (sendo que a clareza também vai desaparecendo) compreendo que nunca quis. Fui eu quem me pôs doente assim, foi a crença de que não querendo absolutamente nada disto, seria capaz de transformar e metamorfosear o mundo a meu bel prazer, ir moldando devagarinho, com paciência, até que se assemelhasse mais e mais àquilo que julgava (e julgo) ser o sitio onde gostava de ter vivido estes anos todos. E agora que falo em anos… tantos anos! Tantos anos para quê? Que imbecilidade ter-me sujeitado tantos anos a esta podridão, ter-me levado lentamente à loucura, ter-me importando com isto, com aquilo, com aquel’outro, ter-me obrigado a respirar fundo tantas vezes quando só me apetecia rasgar a pele que reveste o meu corpo e deixar as entranhas à mostra, as mesmas que estou de estarem a morrer neste preciso momento dentro de mim.

Tenho a certeza de que sofro de uma doença terminal. Tenho a certeza de que estou a enlouquecer. Tenho a certeza de que não quero mais nada disto. Tenho a certeza de que estou exausta, quebrada, cansada. E tenho a certeza de que tudo o resto são incertezas. Vou recostar-me a ler um livro, a encher-me das certezas de outra pessoa qualquer… e lembrei-me agora mesmo, neste instante, que essa outra pessoa qualquer é de certeza uma daquelas que eu não suporto, que eu já não suporto. Basta, até os loucos merecem sossego!

16 outubro 2012

Dançar entre as gotas da chuva ou O tempo mata

Faz tempo que o tempo se fazia na palma da nossa mão. A culpa não é de ninguém, e se há alguém a quem atribuir culpa não é a nenhum de nós. É que faz sempre tanto tempo, passam-se sempre tantos anos em cima dos nossos ossos, a demandada das horas desenfreada é sempre um cansaço grande que nos dobra, e nos molda, e nos quebra e que eventualmente também nos mata. Mata-nos assim devagarinho, como quem não quer matar, mas mata. Como quem quer só provocar uma ligeireza de dor que passe rápido mas assuste, mas que no final e feitas as coisas, mata muita coisa, mais que balas, ou morteiros, ou facas, ou veneno para ratos. É que nós não sendo ratos, somos. Suportamos um numero pavoroso de doenças, gostamos do esgoto da alma porque lá faz frio mas é mais confortável, roemos o coração de dentro para fora como se fosse um queijo, deixamos-lhe buraquinhos, buraquinhos por onde entra muito ar, muita chuva, em dias de tempestade até lá entram, com jeitinho, os relâmpagos.

A culpa não é nossa. O tempo passa sempre demasiado rente à nossa pele e nós não damos por ele, queremos muito mas quando olhamos ele já foi à vida dele, sempre naquela labuta exaustiva de quem é muito atarefado quando na realidade não tem absolutamente coisa nenhuma a fazer, nenhuma tarefa real a não ser exactamente essa, a de passar. E pode passar-se devagarinho, já passámos devagarinho tantas vezes em frente ao jardim, lembraste? Desacelerávamos o passo e caminhávamos vagarosamente, aborrecidamente em frente aos portões altos sempre fechados daquele jardim. E que bonito jardim que era, secretamente sempre lá quisemos entrar, nunca tivemos coragem mas agora gostávamos e ter tido. Eu gostava, tu não? Claro que sim. O que realmente queríamos era que nos deixassem viver lá dentro, agachados numa árvore a ver cair a chuva e a dançarmos entre as gotas como se fossemos mesmo capazes de voar, planar entre elas suavemente, sentir o frio húmido da nossa pele despida entre as gotas da chuva. Só queríamos isso, e isso não era nada,

Há quem queira tantas coisas, quem peça tanto, quem exija o mundo e o mundo não chega. Nós só queríamos um lugar tranquilo onde pudéssemos finalmente descansar. Pedíamos pouco, e nem esse pouco tivemos. Que desgraça o tempo, que infortúnio desejar tão pequeno e o tempo querer à força dar-nos o grande, o efémero, o material, o fútil, o acessório.

A culpa não foi nossa, Se há alguém a quem atribuir culpa não somos nós. Foi o tempo que já faz tempo que passou na palma da nossa mão. Foram os portões sempre fechados do jardim. Foi a falta de coragem. Foi o tão pouco ser tão perfeito que o tempo, ignóbil, nos convenceu que era tão pouco e tão perfeito que não existia, por isso deu-nos o grande, o efémero, o material e o fútil, e nós aceitámos. Aceitámos e deixámos de conhecer o caminho até ao jardim, passamos por ele com o tempo no bolso e ele arrasta-nos, empurra-nos, obriga-nos a correr e a passar. A correr e a passar. A correr… e…  a passar.

12 outubro 2012

A vida foi doce nas Fontainhas

A vida foi doce e lenta nas Fontainhas. Se a lambêssemos, se tivéssemos essa coragem, ela sabia a marmelada com queijo, a dióspiros maduros, a bacalhau na brasa e a massa com atum, tudo confeccionado com requintes de ternura e esperança e vontade e ilusão boa de sentir.

Lembro-me bem das janelas, podia senti-las agora mesmo, tocar-lhes devagar, puxar a maçaneta e abri-las de par em par, respirar fundo o ar frio que fazia esvoaçar os meus cabelos e me fazia chorar da alegria imensa que era aquela paz toda a inundar as nossas paredes. Fomos felizes em cada recanto.

Nunca tivemos sofá, só um puff, umas almofadas no chão e as cadeiras da mesa de jantar. Um móvel pequeno cheio dos nossos CD’s, com a aparelhagem na prateleira do meio, e a televisão pequeníssima e velha na do topo. As paredes tinham textura, papel de parede amarelado com veios sedosos que se podiam tocar com ternura, onde colávamos os posters que roubávamos das paredes da rua que anunciavam concertos que não podíamos ir ver porque o dinheiro não dava para tudo.

A minha mesa de trabalho estava encostada a uma das janelas da sala, sempre cheia de nós: tecidos, tintas, negativos, material de desenho, a tua câmara, os meus livros. A alegria de comprarmos um CD e o ouvirmos até à exaustão, dia-após-dia, noite a dentro.

A rua era calma, éramos poucos mas tínhamos sempre mercado onde comprávamos fruta e legumes, e a antiga feira da Vandôma de onde trazíamos sempre qualquer coisa que fosse barata mas bonita, principalmente que fosse nossa. Em frente um muro velho onde, invariavelmente, estava sentada a D. Teresinha, uma senhora de idade cheia de uma vida dolorosa (via-se nos ossos, no caminhar, no sorriso envergonhado, que tinha sido dolorosa) por quem nos apaixonámos instantaneamente, que nos segurava nos braços suplicante por um pedaço de pão que fosse. E nós partilhávamos. Nunca nos esquecíamos dela, fizesse chuva ou sol. Nunca me hei-de esquecer do olhar dela, sempre tão dentro do nosso.

O nosso quarto tinha o colchão no chão e um guarda-fatos, um baú pequeno com as nossas coisas (velas, algumas pulseiras, fotos especiais, recordações), um candeeiro pousado no soalho (ora de um lado da cama, ora do outro, dependia de quem ficava até mais tarde acordado) e um rádio que transportávamos diariamente para todos os cantos da casa.

Onde mais falávamos era na casa de banho. Um de nós na sanita e o outro sentado no chão (com o rádio), ou um de nós a tomar banho e outro na sanita (sempre com o rádio). Ficámos sem luz na zona do quarto e da casa de banho durante uns bons seis meses, eram extensões por tudo quanto era sitio, o candeeiro servia de lanterna de um lado para o outro e os banhos eram tomados quase às escuras. Continuava a ser doce e lenta a vida nas Fontainhas.

Nunca devíamos ter saído de lá. Fomos felizes como é hoje impossível ser-se feliz. Qualquer dia volto lá. A D. Teresinha já deve ter morrido, mas devem viver pessoas lá em casa. Toco-lhes à campainha, subo para um chá e digo-lhes:

- Foi tão doce viver aqui…

Abro as janelas de par em par e sinto o frio encher-me os olhos de lágrimas novamente. Depois desço as escadas rapidamente, percorro a rua a passos largos e nunca mais lá regresso. Dizem que não devemos voltar aos sítios onde fomos felizes, e eu acredito. Hei-de sempre acreditar.

10 outubro 2012

Horas penduradas no tecto

Passei a noite em branco, às voltas com o coração nas mãos a ver as horas saltar do visor. Foi pavoroso. As horas saltavam e penduravam-se no tecto, inquisidoras. Que inquerem? Que querem? É de mim ou vocês são todas as horas do planeta, com o peso de todas as pessoas que passaram esta noite em branco com o coração nas mãos a ver-vos saltitar para fora do quarto, e vocês a percorrerem as ruas, as vielas mal iluminadas, os bosques escuros e frios, as praias de areia branca e fina, tão fina que parece o pó que se acumula nas prateleiras dos livros que já ninguém vai voltar a ler?

Estive acordada horas e horas a fio, a tentar trocar as voltas às emoções, a desfragmentar os momentos, a muito custo a reduzi-los a insignificâncias que eu sei que não merecem mas que, esta noite que passou, eu não tive coragem suficiente para reconhecer.

Ás vezes apetece-me desistir. Falar de uma vez por todas, deitar tudo por terra e aliviar o peso das tantas comoções que tenho compactadas em mim. Não suporto já andar sempre tão cansada, tão triste, tão sedenta de coisas às quais não sei dar nome. Aspiro ao total esquecimento de mim, já não tolero esta náusea, este querer sem querer, a melancolia profunda com que preencho as horas para não ter de as encher com a ternura que  não quero sentir.

Passei a noite em branco a tentar não sentir e tudo aquilo que fiz foi sentir. As fórmulas mágicas deixaram de funcionar, o botão que me desligava deu sumiço. E como é que eu pude ser tão imprudente para deixar que isto acontecesse? Como pude ser tão irresponsável e arrogante, como pude esquecer que todas as histórias já foram contadas e que agora, neste instante, o mundo estremeceu debaixo dos meus pés.

É capaz de ser do sono. Sim, é realmente capaz de ser do sono. Tenho a certeza de que se dormir sobre este assunto, quando acordar ele já não existe. Ele já não existe. Já não existe. Que na verdade nunca existiu, isto foram só os efeitos da ressaca. Uma pessoa deita-se com um corpo qualquer e depois já passou. Se eu me deixar tocar por outra pele, já passou. Se substituir isto por outra emoção, já passou. Se eu mantiver a fórmula que sempre funcionou, já passou. Se eu for capaz de me esquecer que tenho coração, já passou. Se eu deixar de sentir, tenho a certeza que já passou.

[…e porquê? porque é que ainda não passou?…]

07 outubro 2012

Amorzade

Mas porque e para que raio havemos de ser todos amigos? Amiguinhos daqueles do coração, que gostam tanto uns dos outros que se nos aperta o peito só de imaginar que algum desses amigos se encontra em apuros, doente, de coração partido ou lágrima a escorrer no peito?

Para que é que serve essa coisa toda de nos amarmos todos assim, de forma tão trágica, tão terminal, como se o rodopiar do mundo a qualquer momento nos pudesse levar vendaval a dentro perdidos no infinito Universo de onde já não sabemos voltar?

É um fardo terrível, uma pessoa sofre horrores com tanta ternura, com tanto carinho e incondicionalidade. Somos tão amigos, tão amigos que usamos o peito uns dos outros a nosso bel-prazer, ele há dias em que é almofada fofa onde deitamos a cabeça e a deixamos a descansar, ele é copo de vinho onde afogamos infortúnios, ele é bola de malabarismo em mãos de palhaço que nos faz rir até que a dor no estômago não seja mais suportável. Usamo-nos tanto, roubamos tanto uns dos outros.

Chega a ser penoso, uma exigência emocional de tal magnitude que existem inclusive os dias em que julgamos que sem eles, os amigos, não sobrevivemos, falta-nos o ar, sufocamos tanto dentro do amor absoluto que nos temos uns aos outros.

Há dias em que me apetece chorar. Em que vos tenho tanto dentro de mim que me sinto cheia, quase indigesta. Há dias em que choro para vos expulsar de dentro de mim, por medo de, um dia em que o meu peito vos seja necessário como almofada, copo de vinho, bola de malabarismo, eu já não tenha espaço para vos acolher e vos conseguir abraçar com todo o sangue, todos os poros, toda a ternura de que é feito o sentimento que tenho guardado só para vocês.

A culpa disto é vossa, do vosso amor, e do meu. In-con-di-cio-nal.

Desumanidades

“O lugar de onde vim era-me insuportável. Aconteciam demasiadas coisas. Coisas que se atropelavam. Coisas sem sentido algum, abomináveis. A corrupção instalada. O Estado corrompido. Crianças violadas. Tudo isto no meio de um riso histérico e um desespero absoluto. O lugar de onde vim já tinha perdido, ou pior, estava na iminência de perder tudo o que era seu, um destino qualquer. Só restavam as casas, as ruas, uma paisagem em ruínas. Comecei a perguntar-me se os seres que tinham cara e falavam seriam humanos. Era difícil encontrar um resto, um rasto de humanidade. Senti o terror de já ser como os demais: uma cara e uma boca desumanas. Só restavam as pedras, umas sobre as outras. E por baixo dos gritos, da tagarelice infinita, um silêncio de morte.

Comecei a chorar de manhã, à tarde e à noite. A chorar sem saber por que chorava. A chorar só. Comecei a tomar demasiados comprimidos, a beber cervejas a toda a hora, a fumar dois maços de cigarros. Não deixava de ser insuportável. Só quando dormia era suportável. Tive de fazer as malas com as poucas forças que me restavam e fugir dali num derradeiro acesso de lucidez ou de inconsciente coragem.

O que será feito de mim? O que será feito do mundo? O que deveria ser feito? Como deverá ser feito? E para que fim?

Acordei. Tomei um duche rápido. Tomei o pequeno-almoço e a minha alma sinto-a levemente a estremecer.”

Pedro Paixão em “Quase gosto da vida que tenho”

04 outubro 2012

Amor em tempos de pré-revolução

Éramos um país à beira da revolução.

Não sei como fui tão burro que me apaixonei e por ti, e pior, tu tão desatenta que acabaste por te apaixonar por mim também. Que estupidez, que falta de cuidado, uma irresponsabilidade que duas pessoas se apaixonem, tenham a terrível ousadia de se apaixonarem quando o mundo inteiro está em guerra, quando existem pessoas a passar fome, onde em cada esquina proliferam e se reproduzem sem-abrigos que sabe deus receberem um sorriso ao longo de todo o dia, e nós, ali, inconsequentes, apaixonados um pelo outro, a trocarmos beijos sobre o rebenta-minas, a abraçarmo-nos em bicos de pés sobre espingardas, a darmos as mãos com força em volta de cartazes revolucionários que falam da injustiça, da raiva, do desalento e da miséria.

Não sei como fomos tão idiotas, os dois, que a culpa não morre solteira. Como ao primeiro contacto nos estatelamos no chão um do outro, dentro do peito, e no mesmo momento, à nossa volta as pessoas perdiam casas, empregos, dignidade e lentamente se desfaziam em passes mágicos malabaristas para serem capazes da façanha de colocarem uma refeição na mesa para os filhos.

Egoísmo puro, caturrice desconexa, teimosia exacerbada, a de querermos à força amarmo-nos num sitio falido como este. Quem poderia aceitar emoções em polvorosa como aquelas que tivemos a insensatez de sentir? Como não julgar o nosso amor por indiferença pelos danos dos outros?

Fugimos para que não nos privassem, para que não nos enfiassem olhos dentro palavras de ódio, de rancor, de revolta. A nossa pena era o contágio, tínhamos medo, muito medo de que todo aquele sofrimento entrasse dentro de nós e nos condenasse ao abandono das coisas que por vergonha e pudor têm de desaparecer.

Horror de nos termos apaixonado num sitio débil como este país à beira da revolução. Embrulharemos e protegeremos o nosso amor até que nos falte o fôlego, nunca iremos perdoar àqueles que fizeram tanto mal à terra que nos viu nascer e nos repetem incessantemente que o é o dinheiro que nos move, que nos reduzem a números sem tecto, que amor é ficção, é novela, é utopia. Repetiremos de volta, até que as espingardas nos explodam debaixo dos pés, que o amor, esse, será sempre o mais importante. Ainda que insensato, estúpido, inconsequente, irresponsável. Aliás, principalmente por tudo isto, e por muito muito mais.

25 setembro 2012

A morte morre-se muitas vezes

Quando é que páras de morrer? Quero dizer… quando é que morres e levas de uma vez por todas a esperança de que acordes e regresses?

Quem nos é importante demora muito tempo a morrer, e morre muitas vezes dentro de nós. Primeiro morre na iminência da morte, depois morre na notícia da morte, depois ainda morre no velório, no enterro, na missa… morre muitas outras vezes em todas as lágrimas que lhe são dedicadas e outras tantas por cada vez que é contada uma história sobre ele, e as histórias são eternas… enquanto existir alguém que as conte essa pessoa há-de definhar lentamente para todos os que lhe sobreviveram. E raios, como é difícil ser-se um sobrevivente.

Não se morre por se morrer, morre-se pelos outros. Quando desapareceremos, desaparecemos, parece simples e terminal. Um ponto final na ultima frase do ultimo livro de um escritor que já não vai escrever nem mais uma palavra. Definitivamente definitivo, o final.

Após estas mortes todas, há uma que resta, subtil e entre a neblina. No cemitério onde o corpo se vai desfazendo aos poucos, a morte sobrevive ao próprio morto, é que depois do corpo ter desaparecido, ele continua a morrer devagar. O mistério do seu desaparecimento continua a assombrar quem cá fica, quem continua a visitar a campa que diz que é para recordar mas não, isso é mentira. Continua-se a visitar da campa do nosso morto que não acaba nunca de morrer para ver se está tudo no sitio, se por um qualquer passe de mágica a lápide não está ligeiramente mexida, se não há terra espalhada com um rasto, por mínimo que seja, que nos leve a algum lado onde o nosso morto nos espere com o sorriso de quem acabou de pregar a maior partida da história da humanidade, a nós, e aos outros, aos que continuam a morrer para as pessoas que passam por nós na rua com lágrimas escondidas e machados cravados no peito, e nós, que os reconhecemos, a adivinhar-lhes um morto nalgum sitio ermo, escuro, solitário.

Quem morre nunca acaba de morrer. É esse o verdadeiro peso de se não morrer, ter de suportar, dia após dia, noite após noite, a carga dos nossos mortos que teimam em não morrer. E é por isso que somos mortais, porque mais tarde ou cedo acabávamos por definhar cheios da morte dentro de nós, e aí tornavamo-nos mortos-vivos, metade cá e metade lá, metade a viver e a outra metade a morrer lentamente, sem nunca acabar de morrer, com as mãos cheias dos olhares dos nossos mortos.

21 setembro 2012

Não vás. Não vás já.

A abrir caminho por entre as velas espalhadas na nave central que desenhavam mórbida mas estranhamente pacificas o trajecto até ti. O último.

Aquilo não fazia sentido nenhum, continua a não fazer, mas na altura menos ainda. Agarrada ao teu caixão, meu amor, queria dizer-te para não ires, para virares costas ao que quer que fosse que tinhas à tua frente e voltasses para trás, para mim. Tantos anos e nem uma discussão acesa, nem um arrufo mais violento, nem uma única vez vontade de te dizer

- Vai-te embora!

Onde é que já se viu agora deixares-me para aqui sozinha, a cuidar do nosso gato, a cozinhar no nosso fogão e a comer com os nossos talheres.

É uma dor infinita esta a de já não te ter comigo. A de já não escutar a tua voz, a de, dia após dias, me ir esquecendo lentamente da tua pele na minha, das tuas mãos a afagarem o meu cabelo, do teu sorriso pregado ao meu. Dói-me Diogo, que queres que faça?

Entre aquelas velinhas todas lá estavas tu, deitado muito direito, vestido com um fato que te não conhecia, como de resto nunca te conheci fato nenhum, detestavas as camisas cheias de botões que davam trabalho, as gravatas que te esganavam, os botões de punho pavorosos que tinhas de herança e nunca usaste. Diogo, estavas ali à distancia de um sussurro meu e eu sem poder sussurrar para dentro de ti porque já não me ouvias

- Não vás. Não vás já, meu amor, que o nosso amor ainda não acabou.

A preferir que voltasses e nos desentendêssemos, que acabássemos o nosso amor, que o matássemos com o tempo e com a erosão da memória. A querer que voltasses para que me pudesse zangar contigo e depois, quando realmente partisses, eu não sofresse desta maneira. Com tanta força querer doar as minhas recordações, de que é que me valem agora as lembranças de ti?

Eu não sei de nada, Diogo. Só sei que não tarda é noite escura, noite fria e húmida e me vai custar horrores não ter o teu corpo para me enroscar, a tua cova perfeita entre o ombro e o pescoço para aninhar o meu rosto. Não tarda é dia e a casa já não vai ter o ruído dos teus passos, nem o ralo do lavatório os teus pelos da barba, nem nada. Não tarda é noite, e depois dia, e depois noite novamente e eu vou ter que me habituar a viver sem a tua presença. E, Diogo, bem sabes que eu não quero habituar-me à tua ausência. A minha voz que já não escutas

- Não vás. Não vás já, meu amor, que o nosso amor ainda não acabou.

E não acabou. Não acabou. Não acabou. E que faço, pergunto a quem de direito, que tu já não me respondes, com o nosso amor que não acabou?

Como é que eu vou agora, diz-me! rogo-te!, explicar ao meu coração que aquilo que ele sente por ti tem de acabar sem no entanto, nem de perto nem de longe, ter sequer chegado a aproximar-se de acabar?  Como é que eu vou caminhar repetidamente em sonhos, por entre as velinhas da nave central, para te encontrar ali, irremediavelmente morto, irremediavelmente triste, e ficar a olhar-te ali, irremediavelmente morta, irremediavelmente triste?

15 setembro 2012

O Monstro (segundo a sua senhoria)

E entretanto quis fugir. Foram os rostos, todos difusos, todos iguais, todos sem expressão ou emoção.

De repente eu já não era eu, era uma continuação daquilo que não compreendia, uma gosma viscosa que sugava o pedantismo e se transformava numa besta de quatro olhos, cinco pernas e espumava, espumava, espumava…

A sede. Tanta sede de um liquido que não existe. Sede de medo, de raiva, de ansiedade, tudo enfiado numa taça. Vontade gutural de engolir aquilo tudo e de me tornar ainda mais uma aberração.

De nada adiantava fugir, os membros não se moviam. Queriam mais daquilo, mais do inefável ruído podre que se entranhava nas vísceras e provocava vómitos.Tudo tremia, tudo estava em excesso, se não eram lágrimas eram fluidos descarnados de medos profundos e antigos.

O dia entardeceu com pressa, e o Monstro deixou-se ficar sentado à lareira quentinha do meu coração. Riu alto, sentiu qualquer coisa semelhante (mas não igual) à felicidade. Estava em casa. Da minha parte deixei-o ficar, os monstros, segundo consta na acta milenar da minha alma, condizem com a minha decoração interior.

02 setembro 2012

É a isto que se chama amor. Fácil.

Na morte não há heróis. Venha quem vier, não são heróis os que partem nem os que ficam, os que ficam muito menos.

Sofre-se de forma dolorosamente solitária a ausência, a repentina falta da voz, do cheiro, do toque. Ficam sempre palavras por dizer, penduradas nos olhos cabisbaixos semi-envergonhados de quem não teve tempo para as agarrar no ar e as soprar para quem o deixou.

Há uma injustiça tremenda na morte. Na morte em si, no desaparecimento total e sem sentido de um corpo que já nos abraçou, de um rosto que já se virou por nos ouvir chamar, de um olhar que já parou em cima do nosso para prestar atenção não só ao que dizíamos com a boca mas principalmente àquilo que pretendíamos que ficasse compreendido sem letras.

Não há heróis, já disse. Ninguém enfrenta estoicamente a perda de quem, por mais anos que nos passem por cima, nos vai fazer falta. Ainda que se não queira existem as lágrimas, e depois, por cima disso, existe o buraco profundo que permanece por tempo indeterminado e provavelmente infinito por dentro, num sitio qualquer ermo sem nome, não é bem no peito, não é bem na cabeça, é em todos estes lados e estende-se para lá do nosso próprio corpo, toca aquilo que tocamos, entranha-se na comida que comemos que perde sabor, contamina a água com que tomamos banho e não descola, não desaparece. Perdura para lá do aceitável e suportável.

Não é a dor que passa com o nascer sucessivo do Sol, dia após dia, é a união física que ao desaparecer, cria em nós a ilusão de que fica mais ligeiro o sofrimento, mas não fica. É impossível, é uma loucura, uma insensatez a que nos permitimos porque senão a vida em si, a que continua deste lado, tornava-se de tal modo insustentável que de repente o buraco dentro e fora de nós já éramos nós e desaparecíamos inclusos nele, parte dele, escuridão como ele.

Torna-se penoso sobreviver a perdas consecutivas. A vida converte-se num sitio solitário, cada vez mais só. As pessoas que nos amaram e a quem amámos vão desabitando de nós as suas vidas e este é um caminho tortuoso e triste. Tão desoladoramente triste quando as baixas se vão amontoando, amontoando, tombando à nossa volta como peças de um dominó cansado de inventar malabarismos para sobreviver a fazer os restantes dias valer a pena.

Não existem heróis na morte. A morte deve ser chorada, deve revoltar-nos, deve fazer de nós meninos a bater com o pé e a perguntar vezes e vezes sem conta “porquê?!”, deve ser sofrida para dentro e para fora, e mesmo que o mundo não pare para esperar que o sofrimento amaine, ele que se dane, que gire, que continue a sua azáfama indiferente à nossa dor, é nossa e deve ser louvada, porque só quem ama desmesuradamente é capaz de aceitar e se deixar arrastar para o abismo porque sabe o preço altíssimo da saudade.

Quando ela chegar, a morte, compreende que há quem compreenda também, que há quem fique no escuro à espreita, com cuidado, afastado enquanto nos quiserem afastados, mas que entendem e, enquanto for permitido, não querem desabitar de tua, a vida deles.

Somos os comandantes uns dos outros, é nossa obrigação certificarmo-nos de que na hora certa, não devem existir heróis, e para isso estamos lá, de pé fincado nas entranhas da vida uns dos outros. E é a isto que se chama amor. Fácil.

26 agosto 2012

Trapalhadas, palermolas e decisões tomadas em dias de tempestade

O mundo divide-se entre dois tipos de pessoas: as que eu amei e as que eu gostava de ter amado. Estes dois tipos de pessoas, por sua vez, cada um bem dentro de cada categoria, subdivide-se noutros que catalogo entre, dentro das pessoas que amei, as que foi bom amar e as que não poderiam ter sido mais erradas (embora amá-las tenha sabido bem); e dentro das que eu gostava de ter amado, as que teriam sido boas, tão boas para mim, e as que, por portas e travessas, eu sei que teriam sido boas de amar, pelo amor debaixo das pálpebras ainda que em dias de cegueira tempestiva total e absoluta.

Resumindo, e eu que não gosto de resumir coisa nenhuma, fica sempre tanto por decifrar, esclarecer e enaltecer nas coisas resumidas e espremidas, existem dentro de cada laia as boas e as más pessoas, por falta de melhor forma de as reduzir a insignificâncias que podem não merecer, mas que a força das circunstancias assim o obrigam.

Aprende-se a amar cedo, no recreio da infantil ama-se aquilo que de desdenha, o miúdo que nos rouba os brinquedos, que nos espreita na casa de banho, que nos puxa os carrapitos ou nos chama nomes. Sabe-se hoje, à partida, que estava criada a receita perfeita para a desgraça, para se nos cravejarem subtis mas eternas as primeiras fissuras no peito.

Mais tarde, do alto de toda a sabedoria fútil de que nos ensinam os desenhos animados de meninas loiras quase-perfeitas, com corpos impossíveis mas perfeitos, que têm 10 anos mas já usam saltos altos e ainda por cima salvam o mundo de terroríficos ataques de monstros crivados de olhos, braços e gosma verde a escapar entre as narinas arreganhadas, amamos o rapaz mais burro mas bonito da sala. Ignoramos quem tenha sido John Nash e lutamos todas pelo mesmo desgraçado que, além de não merecer essa luta e cabelos arrancados, nunca fica com nenhuma, porque quando a luta termina já estamos a começar a descobrir que aquele palermolas de cabelo perfeitamente penteado só quer é jogar à bola e espreitar-nos debaixo da saia sem saber o que fazer com aquilo que lá encontra.

Quando o amor à seria aparece já nós estamos tão confusas com aquilo tudo que lhe trocamos as voltas, damos o dito por não dito, enrolamo-nos em cambalhotas efectuadas com pouca perícia e por isso mesmo lá nos vamos habitando de ossos partidos, nódoas negras e lesões mal curadas.

Parece impossível mas é mais ou menos por esta altura que notamos que existe uma arguta diferença entre amar aquilo que amamos e aquilo que nos faz bem. Decidimos sem sabermos o que isso realmente significa amar aquilo que amamos, só porque sim, só porque no meio de tanta trapalhada, cabelos penteados e desdém, julgamos que aquilo que nos faz bem é o que nos acelera o peito e nos provoca turbulência nos órgãos.

È agora, só agora, depois da decisão estar tomada, que as gavetas se enchem daqueles dois tipos de pessoas: as que amamos e as que gostávamos de ter amado. Quando compreendemos esta diferença já a carroça passou e levou os cavalos com a abóbora e os pós de perlimpimpim dentro, ficamos com a cómoda escancarada cheia de rostos que nos fitam e nós de mãos e pés atados, cheias de vontade, mortas da vontade de pegar naquilo tudo e os trocar de sitio. São só as pessoas que gostávamos de ter amado aquelas que devíamos ter amado, por todos os motivos e mais alguns, mas principalmente porque seriam essas aquelas que nos teriam amado na mesma medida e em cima disso tudo, como se fosse pouco, nos teriam feito bem, só bem. Simples.

Mas enfim, teremos sempre a Navegante da Lua que dentro dos seus fatos incríveis, das suas pernas de metro e meio, e do seu loiro ofuscante, vai fazer por nós aquilo que não soubemos fazer na altura certa: lutar com monstros crivados de olhos, braços e gosma verde a escapar entre as narinas arreganhadas, e claro, amar aquilo que efectivamente lhe faz bem. Só bem. Simples.

16 agosto 2012

Sr. Grilo ou A embriaguez do silêncio

Quando o silêncio não chega, ainda que absoluto, o que fazer aos pedaços quebrados que se vão empoleirando e preenchendo o chão em volta?

Há discórdia, estranheza, confusão e revolta contra o silêncio. O nada é uma ideia, só uma ideia de onde se parte para outras, mais grandiosas, respeitáveis, fáceis de aceitar. O vazio não se entende, existe desabitado daquilo que se conhece, que se sabe certo, ordinário e sóbrio.

Quem está bem dentro da solidão está embriagado de ruídos mortíferos, de granadas, de coisas pequenas que se tornam imensas, de coisas imensas que, gradualmente e de forma dolorosa, se tornam pequenas. Entontece a alma ver a solidão de dentro, entornam-se lá para dentro anos e anos de vida, relógios parados, paredes que gritam, pessoas que não falam por estarem mortas, bandejas de refeições que não sabem a coisa nenhuma, animais enraivecidos de dentes arreganhados.

Há dias em que tudo diz:

“A vida a ficar pequenina, não é Sr. Grilo?”

e aquilo de repente faz sentido. Vamos tomar a bica e em vez da conta

“A vida a ficar pequenina, não é Sr. Grilo?”

estamos no supermercado e a menina da caixa, em vez de pedir os cupões de desconto

“A vida a ficar pequenina, não é Sr. Grilo?”

arrumamos o carro e o arrumador, em vez de pedir uns trocos nos sussurra, bafiento de alcool, drogas, e falta de sexo

“A vida a ficar pequenina, não é Sr.Grilo?”

Chega-se a casa e o espaço parece gritantemente claustrofóbico, tudo nos falta e tudo nos sufoca, os sofás estão no canto errado da sala, a cómoda incomoda porque estamos sempre a bater com o dedo mindinho na esquina, apesar de a sabermos no mesmo sitio desde há anos, os talheres são em demasia para uma casa onde se come sempre sozinho. Descobrem-se palavras no meio dos atoalhados, encontram-se gestos na água fervente do chuveiro, escutam-se choros debaixo da tinta da parede, já gasta. Olha-se para a janela, julga-se ver um vulto que esbraceja furiosamente do outro lado, no prédio em frente. Não se acredita, precisará de ajuda? Esfregam-se os olhos com força, fechamo-los ligeiramente em tom de miopia. Lá está o vizinho de quem não se conhece o nome e que grita, suplicante

“A vida a ficar pequenina, não é Sr. Grilo?”

Na borda do passeio vai, saltitante e feliz, o Pinóquio, que ainda acredita, coitadinho, que a fada madrinha o vai transformar num menino… de verdade.

10 agosto 2012

E nada o vento levou…

Havia um televisor antigo na sala. Calado, num silêncio suplicante. Um televisor em sofrimento. Sentia-se que tinha coisas para dizer, mas sem poder, coitado, para sempre silenciado por outros mais modernos, mais bonitos, com imagens mais nítidas, com acesso a alta definição. Via-se que estava sozinho entre vasos de plantas meias murchas, também elas a sofrer, a requerer amor em sítios onde já não existia amor para dar.

Dentro do televisor, onde só existia negro, sem imagem, movimento ou som, vi o teu rosto impenetrável, abandonado à perda, sem compreender os desígnios daquilo que a vida nos vais colocando no prato para comer e calar, porque lá está, “é a vida”, “faz parte”,´”há que ser forte e seguir em frente”…

E quando não se quer seguir em frente? Quando o mundo desaba e nós sem sabermos como nem onde. O teu rosto parado no ecrã desligado, despovoado da ternura evidente e gritante dos que por ordem absolutamente normal e esperada nos deviam dar a mão, ensinar-nos como apertar os cordões ás sapatilhas, dar um aperto de mão “à homem”, descodificar aquilo que o tempo nos vai entregando para decifrar…

E Rhett Butler grita aos meus ouvidos:

“You shloud be kissed, and often. And by someone who knows how…”

e eu devia beijar-te agora. Devia pegar na tua mão e levar-te para longe. Encontrar-nos junto à linha férrea e sentar-me ao teu lado no primeiro comboio que passasse, na carruagem que parasse exactamente à nossa frente, enquanto a tua mão tremia junto à minha e eu a apertava com força e te dizia sem precisar de usar palavras, que estava tudo bem, que te levava para onde o ruído fosse suportável, para onde o teu rosto não estivesse infinitamente parado, sofrido, tétrico e nebuloso pelos toques que te foram roubados sem que tivesses possibilidade de os reter dentro de ti, de lhes dares o beijo que mereciam, o beijo que durasse o resto das horas e dos dias que tentas encher com a palha que julgas preencher o vazio que a ausência desses olhares deixaram para sempre cravadas no teu corpo.

E sussurra a Scarlett junto ao teu ouvido: “I came 'cause I was so miserable at the thought of you in trouble”

e sou eu quem o sussurra para dentro de ti. E tudo o vento levou é uma mentira. Nada, meu querido, nada o vento levou. Fica tudo intocável, impenetrável, inviolável, no sitio onde não sabes, mas podes sempre regressar, porque dentro do peito (onde se escondem as emoções), reside e permanece aquilo que nos move, aquilo que no final de contas e no final do dia realmente importa, o amor.

E o amor não existe no espaço nem no tempo, está parado, como o televisor antigo, com as memórias. Essas são tuas e ninguém as pode roubar. Leva-as, são tuas, até ao fim das coisas que nunca se hão-de extinguir.

24 julho 2012

Conto de falhas

Não conseguia respirar. Não era possível respirar. Em volta tanto e tão pouco ar. As mãos pousadas no colo e as veias salientes pulavam, arquejavam furiosamente, quando regressavam à mão eram um chicote de encontro aos ossos, à carne.

E depois já não estava ali, tocaram no ombro e o olhar fugiu para para o rosto do amigo em pânico a contar que aprendeu a nadar quando o pai o atirou para dentro de água e lhe disse:

- Agora safa-te!

e ele com medo, a esbracejar, a querer que alguém lhe pusesse a mão e o tirasse dali. A lutar contra a corrente, a dançar com o rosto fora e dentro num sufoco desmedido. A imagem do pai de braços cruzados firmemente sobre o peito a observá-lo de longe, rígido, impenetrável. E ele a safar-se, eventualmente.

Não era possível respirar. A garganta ardia, as palavras não saiam nem arrancadas a ferros, as mãos procuravam impacientemente encontrar um buraco no pescoço por onde o ar pudesse entrar, mas era tudo pele, tudo coberto, matéria inviolável, impenetrável. Os olhos não viam já, o tacto falhava em concordância com o batimento cardíaco que desacelerava…desacelerava… a língua seca buscava exílio no exterior onde não existia sequer uma brisa.

Tudo em volta estava parado, finalmente parado. Tudo em volta estava vazio. O dentro se fez fora, o negro caminhou dançante sobre a pele e criou uma neblina pacifica em torno. Os pés pararam de tremer, o olhar parou para admirar a maravilhosa cor do intimo arrebanhado, hasteado em praça publica, a escorrer o sangue que fedia a história, passado, fantasmas e monstros debaixo da cama. O sublime que era, por fim, ver as próprias entranhas serem arrancadas de si e pousadas no tampo da mesa para que as pudesse comer, trincar, arranhar. Eventualmente até, para as poder matar e só aí ser capaz de compreender a ironia que é estar e ser, finalmente livre. Dos outros, mas principalmente de si mesmo.

08 julho 2012

No escuro não se vê com os olhos

É urgente que se pare para pensar, racionalizar as emoções. Não nos deixarmos levar pelo êxtase, pelo entusiasmo das coisas efémeras.

Não é que não sejamos boas pessoas, que somos. Não é que não sejamos amáveis no sentido em que somos passíveis de ser amados, que somos. Não é que não tenhamos virtudes, que temos. Mas em boa verdade, nem todos nos servimos dentro uns dos outros.

Aquilo que queremos da vida é completamente diferente daquilo que a vida quer de nós. Repito, é preciso tornar coerentes, claras e concisas as emoções. Não nos apaixonarmos pelas pessoas pelos motivos errados. Não lhes construir personalidade onde ela pode bem nem sequer existir. Não querermos por força transformar aqueles que nos invadem o peito em peças de lego, que somos capazes de construir ao nosso gosto para que os possamos amar.

É obrigatório que se coloquem os pontos devidos nos i’s, perseguir-lhes o olhar para saber onde se vai pousar. Saber se no mesmo instante, perante uma mesma imagem, a vida nos explode nas vísceras com a mesma intensidade.

Ao longo do caminho há que apertar a mão com força, saber-nos ali, no mesmo empedrado geométrico da estrada, e não numa bifurcação de terra batida. Ninguém devia caminhar sozinho julgando estar acompanhado.

No escuro não se vê com os olhos, mas com o tacto, e com o sangue fervente nas veias.

Tudo se suporta em silêncio

Estou a ficar velha, cansada, gorda e cada vez mais sozinha. Tenho quase quarenta e sete anos, um filho, um ex-marido e uma cadela.

Vivo numa casa que se pode dizer bonita, tem um pequeno logradouro. Nesse logradouro tenho roseiras, algumas ervas aromáticas e uma camélia. Rego-as todas as manhãs e tardes, de Verão, e de manhã, de Inverno.

Tenho um emprego que me permite jantar fora duas ou três vezes por semana, viajar para outros países duas vezes por ano, comprar roupa pelo menos uma vez por mês, e cometer loucuras relacionadas com tecnologia de, pelo menos, três em três meses. Ganho bem, trabalho muito, aprecio pouco…cada vez menos.

Numa dessas duas ou três vezes por semana em que janto fora, vou sempre ao mesmo restaurante com um grupo pequeno mas coeso e já de longa data de amigas. Nenhuma delas trabalha comigo, são pessoas de outras áreas e isso orgulha-me. Com as do meu emprego dou-me pouco, tomamos café de manhã, à hora de almoço e ao lanche no escritório, e de resto tenho os seus contactos no telemóvel por pura cortesia.

O meu filho vive longe, com a namorada. É boa rapariga, gosto dela, mas não me meto entre eles. Sempre me ensinaram que os sobressaltos e as emoções se devem sentir em silêncio, e é isso que faço. De tempos a tempos eles vêem cá passar uns dias, fazem a vida deles e juntamo-nos ao jantar, já aconteceu irmos ao cinema, mas não falamos muito, não temos já nada para dizer. Olhamo-nos, eu e o meu filho, fatigados, como se soubéssemos que temos coisas para perdoar um ao outro. E perdoamo-nos. Em silêncio.

A culpa disto é da minha mãe, que Deus a tenha em descanso absoluto. Eu amava-a tanto, e ela sempre a fugir-me. Eu queria tanto abraçá-la, e ela sempre a afastar-me. A dizer de forma insistente e séria:

- Tudo se suporta em silêncio. Quanto mais rápido aprenderes isto, mais depressa arranjas marido e endireitas a tua vida.

E assim foi. Aos 24 apaixonei-me, ou julguei apaixonar-me, e aos 26 já estava de anel no dedo, a partilhar casa com um homem que mal conhecia, para todos os efeitos. Fomos felizes com alguma remissa, quando engravidei fiquei contente, julguei que seria nessa altura que a solidão se ia despegar do meu corpo, e que nunca mais estaria à deriva dentro da minha própria vida. Não foi assim. Fiquei mais triste. O meu marido tinha um coração enorme, tão grande que não cabia lá só uma pessoa, por isso as chamadas a meio da noite repetiam-se e, como me ensinaram a sofrer para dentro e em silêncio, aos poucos ele deixou sequer de fazer segredo. Ambos sabíamos, ninguém dizia nada, e os dias iam-se amontoando em cima uns dos outros.

Um dia ele disse-me que ia embora. E foi. Não fiquei especialmente abatida, e aquilo não me surpreendeu. O meu filho ficou comigo, ia passar os fins de semana de quinze em quinze dias com o pai, na escola tudo corria bem.

Estou cada vez mais velha, gorda e cansada. E a culpa disto tudo é da minha mãe, e do silêncio, que em vez de me endireitar a vida, escaqueirou-a de forma irremediável e diga-se, ridiculamente patética. 

04 julho 2012

Cenário

“Cenário… Dentro de tua casa, no teu quarto… Eu e tu…”

Começou assim.

È claro que antes do quarto, antes da casa, já existíamos dentro um do outro. Era um mistério para todos, mas não para nós. Sabíamos da inevitabilidade do toque antes ainda de ele existir, tínhamos a certeza de estarmos a fazer sexo um com o outro muito antes de termos os olhos em cima um do outro. Mas isto são outras histórias. Do que hoje é imperativo falar, por pena de um qualquer cataclismo ou catástrofe natural, é do sexo, do toque, do refúgio, do instinto.

Tu não conhecias o sabor da minha pele, tinhas uma vaga ideia, é certo. Já o tinhas imaginado tantas vezes quantas as que tínhamos feito sexo na tua cabeça, e na minha, mas a certeza do sabor de uma pele é coisa que só acontece depois de acontecer.

Já no meu quarto, mas ainda longe de chegar à cama, já as tuas mãos, das quais eu também só tinha uma ideia do peso sobre o meu corpo, agarravam com urgência, mas força, a minha cintura. Eu tinha o meu corpo de encontro ao teu, o espaço que nos separava era longo, apesar de quase inexistente, mas a necessidade continuada de te sentir em mim obrigava-me a puxar-te mais para perto, o mais perto possível, como se o único lugar certo fosse dentro do teu corpo, e tu dentro do meu.

Os teus braços envolveram as minhas pernas que se entrelaçaram à volta da tua cintura e sem nenhum de nós compreender exactamente como, já todo o teu corpo pesava sobre o meu, semi-nu, na cama. A roupa estava em excesso, tudo ardia e queimava, junto ao teu ouvido, sabia que a minha respiração era uma suplica quase. A violência de se querer sentir como se sente quando se quer, e quando o querer já é um vírus, um rastilho à espera de ser ateado.

Quando entraste finalmente dentro de mim tudo o resto ficou suspenso. Á nossa volta existiam todas as coisas de que se foge porque as desejamos em demasia, porque somos animais. Raiva, vingança, amor, coisas das quais se sentem saudades e às quais não sabemos dar nomes ainda, palavras que estavam por dizer, outras que é preciso que se repitam, a incredulidade de que aquilo existia e era real, explosões em sítios adormecidos, as minhas mãos a agarrem-te com violência, os teus olhos fechados com os meus lá dentro. Todas as guerras, tiroteios, gritos, urgências, condensadas no exacto momento em que o tempo já não tem tempo, já deixou de existir, já desistiu de procurar explicações para aquilo que não pode ser calculado.

Enquanto recuperámos a respiração tínhamos o rosto cheio de nós, já não sabíamos os nossos nomes, inventámo-nos outros, esquecemo-nos de quem éramos. Dentro da cabeça ficámos com turbilhões de perguntas que não tinham palavras para serem articuladas. Nada disto foi pensado ou premeditado, enquanto nos fomos embrulhando um no outro, nada disto eram pensamento ordenados ou lógicos, eram sombras difusas de desejos que queimavam aquilo que tínhamos dentro.

Já não sei se foi exactamente assim, de certo há dias em que nem sei se foi, nem levemente, assim. Olho para as imagens que quis manter paradas, como fotografias, do teu rosto pousado no meu, e já não sei bem porque ordem o sexo aconteceu. Sei que foi intenso, total, urgente e que durou a vida inteira de horas, que se prolongaram de forma supostamente infinita nos nossos corpos. Sei que estivemos lá, os dois, e que naquele momento, não existia mesmo mais nenhum lugar certo para se estar e ser.

   “Cenário… Dentro de tua casa, no teu quarto… Eu e tu…”

Começou assim.

02 julho 2012

Traços e cicatrizes

Eu vou amar-te pelas rugas no teu rosto. Pelos traços e cicatrizes que cruzarem o teu corpo.

Vou amar-te pelo teu sorriso, pela tua fome no olhar. Pelos movimentos dos teus braços enquanto falas. Pela tonalidade da tua voz, pela forma como a colocas, pelas pausas que fazes, pelo silêncio que pesa entre algumas palavras.

Por muito bem que te sirva, ou por muito que o queiras, não serei um filho da puta. Não te vou trair, nem magoar. Não te vou ofender. Se deixar de te amar vou saber dizê-lo com cuidado, para não te rasgar os sentimentos. Vou respeitar-te, sempre. Se alguma vez discutirmos e eu levantar a voz, se te fizer mal de algum modo, peço-te que mo digas, para que eu possa pedir-te imediatamente perdão, porque certamente não o terei feito deliberadamente.

Quando fizermos amor vou ser inteiramente teu, e tomar-te-ei como inteiramente minha. Não vou pedir nem dar menos que o total e absoluto. Amar-mo-nos só nestas condições.

Se não for assim não te quero na minha vida. Até aparecer quem valha a pena há que perder muito tempo com quem não presta, e para isso tenho eu jeito. Faço-o como poucos, e bato recordes na estupidez, fugacidade e futilidade das relações. Não te deixes enganar pelo amor que tenho por ti, é real, mas não incondicional. Tão certo como ser completo, é o facto de eu ser capaz de saltar para fora do teu navio e correr o oceano a nado para outros veleiros, coisas mais pequenas, mas que me dão aquilo que eu quero, mais que não seja por escassas horas.

Eu vou amar-te pelas rugas no teu rosto. Pelos traços e cicatrizes que cruzarem o teu corpo. Quero ser uma dessas rugas, uma dessas cicatrizes. Quero-te a ti. Tu. Mulher dos olhos bonitos e tristes. Quero o teu cheiro na minha roupa. Quero o teu suor na minha pele. Quero que os nossos abraços tenham a forma dos nossos corpos.

Não me obrigues a aperfeiçoar uma técnica em que já sou perfeito. Não faças com que eu tenha, mais uma vez, que nadar em mar alto até encontrar uma jangada frágil que se quebre com o meu peso e que por isso tenha que abandonar imediatamente.

Vou amar-te pelo teu sorriso, pela tua fome no olhar. Pelos movimentos dos teus braços enquanto falas. Pela tonalidade da tua voz, pela forma como a colocas, pelas pausas que fazes, pelo silêncio que pesa entre algumas palavras.

As tuas, mas principalmente as minhas, que encho de ti.

01 julho 2012

O sitio onde se escondem as emoções

A certa altura envelhece-se sem ressentimento.

Aprendi isto com a Dona Teresa. A Dona Teresa era uma senhora de idade avançada, sempre teve uma idade avançada, que vivia em frente à casa do meu pai.

Nunca soube quantos anos tinha, sempre foi velha, velhinha. Tinha o olhar de quem vive com carne, pele, coração, ossos, memórias, infernos, lágrimas, dentro da vida. Que carrega tudo isto e muito mais de forma estóica. Como quem sabe de cor os sintomas e consequências de uma doença prolongada e fatal.

Nunca lhe ouvi a voz, nem ela a minha. Mas nos olhos dela aprendi isto: que com o passar do tempo, com as rugas, as quedas, o medo acumulado, a velhice vem sem mágoa, e as pessoas que vão passando por nós vão deixando cada vez mais delas, sem no entanto levarem tanto de nós.

Dona Teresa. Dona Teresa. Quem me dera a mim um dia envelhecer tanto e tão bem como ela. Quem me dera saber hoje e agora, o que é realmente isso de se envelhecer sem ressentimento, sem arrependimento, sem balbúrdia e turbulência no sitio onde se escondem as emoções.

Dona Teresa. Os seus olhos eram um ecrã de um filme. Do filme da vida dela. Dona Teresa, que eu já não sei onde está, que morreu muito provavelmente, que tem dias em que me faz falta encontrar os olhos dela atrás da janela para reaprender o Sol, as horas e o perdão. 

30 junho 2012

As melhores pessoas

As melhores pessoas do mundo são as que estão metidas no avesso da minha vida. Aquelas que têm etiquetas gastas, as que se colam à minha pele, as que têm costuras em relevo de encontro aos meus poros.

Essas pessoas estão lá (aqui), em resultado de uma série de casualidades que se transformaram em inevitabilidades. Gosto que tenham esbarrado com a minha respiração e eu com a delas, e que a certa altura tenham decidido que queriam ficar tanto quanto eu as queria manter, e se foram deixando encostar ao meu peito como quem se sente, finalmente, em casa.

São as melhores de fundo, e as mais bonitas de alma. Ninguém é mais desoladoramente bonito quanto as criaturas que trago por dentro, porque se lá estão, continuam e sobrevivem à passagem e erosão do tempo, espaço e outros conhecimentos, é porque têm em si mesmas um brilho diferente, aquele que trazem os que sabem o preço da ternura, saudade e palavras.

Tenho medo. Um medo atroz de que me sejam roubadas, que partam para outros lados sem que eu tenha tempo de lhes dizer adeus. Medo inquietante de que sejam elas a ir antes de mim. Medo de não suportar a ideia de que serei, de modo inevitável, obrigada a sobreviver sem elas, sobre elas, apesar delas.

As melhores pessoas do mundo são as minhas. São as que sabem que são as minhas pessoas preferidas, independentemente daquilo que digam, façam, errem ou acertem. São as mais inteligentes, interessantes, divertidas e completas. São as que têm falhas, corações partidos e mil cicatrizes atrás da pele.   

As melhores pessoas do mundo são as que estão metidas no avesso da minha vida.

19 junho 2012

A maior mentira da civilização

- Vou amar-te para sempre.

dizias, e o teu rosto tinha luz.

Mas o amor a não ser uma promessa. Quando me juravas amar para sempre eu sorria, quase feliz, mas haviam sombras, incredulidade, a maior mentira da civilização.

O amor não se promete, meu querido. Não se pode prometer algo que não sabemos conseguir cumprir. E isso é justo, é certo, é bonito. O amor dura apenas o tempo que lhe for possível durar, quando se o garante ele deixa de existir, porque a sua forma mais pura tem alicerces na verdade, na honestidade, e a afirmação de que ele vai durar para sempre é em si própria já uma mentira.

Seria da maior ternura e lealdade teres-me dito que me ias amar enquanto eu te fosse real, notável e especial, e isto eu saberia respeitar, e amar-te-ia mais ainda, se fosse possível.

Se fôssemos como a maioria das criaturas o nosso amor duraria uns meses, e que ninguém duvidasse da sua intensidade, porque ela seria genuína e autentica, embora transitória e fugaz. Se nos tivéssemos realmente dentro do peito um do outro, estaríamos um para o outro durante alguns anos, depois a vida acontecia e nós teimávamos em não querer sequer saber aquilo que nós tínhamos acontecido à vida. Separávamo-nos com um beijo e um até já. Na melhor das hipóteses, se nos amássemos verdadeiramente, seria a morte a levar o nosso amor para outros campos. De qualquer forma, como vês e tão bem sabes, o amor tem sempre um fim. Não é eterno nem imperecível. É débil e frágil. E só tem importância pela sua fraqueza.

Se o amor fosse uma promessa, de que magia seria feito?

Só o amor que não sabe o que é o amor pode ser amor real, completo.

De ti, meu querido, não quero promessas de amor eterno. Só quero a tua garantia de verdade e honestidade. Se novamente te ouço

- Vou amar-te para sempre.

Então despeço-me com um beijo, ausento de mim a tua vida, e dentro só desilusão, decepção e mentira, porque quem ama não mente e tu terás acabado de me enganar com a maior mentira da história da civilização.

14 junho 2012

Maria

Maria, dos olhos laços, dos cabelos longos, do passo a compasso, das danças da madrugada.

Respira o mundo e condensa-o em outro mundo, transforma paisagens decadentes em realidades paralelas de magia e exclusiva ternura.

Caminha leve e esconde na algibeira uma flor e aquilo que de mais tem por o saber valioso.

Maria que sabe que existem pessoas que merecem a exaltação, a turbulência, o medo, o desassossego, mas que as há mais importantes que tudo isso, as que merecem o seu silêncio gritante de que enche momentos de suplicas por o saberem reconhecer.

De hábitos antigos compreende almas antigas, tem olho clínico para os mais graves e inquietos tumultos de quem guarda no coração, sofre da doença do com pouco se contentar, do querer o mundo onde só lhe oferecem uma rua estreita, de exigir a maior consideração e amizade por não saber como dar menos que isso.

Maria das paixões exacerbadas e do batimento acelerado. Maria de tristezas alegres no fundo do olhar. Maria dos nenúfares, dos coelhos atrasados, do sorriso meigo.

Maria-confidente. Maria-amiga. Maria-metade. Maria-irmã.

Quando o rugido se virar de encontro à sua palma saberá encontrar dureza doce para ripostar. Quando o vento lhe segredar histórias de antepassados, saberá rir-se dele, com ele, e contar-lhas, tantas outras, de volta. Quando faltar uma palavra saberá que um abraço por vezes é o bastante. Quando as lágrimas caírem não estenderá um lenço, dará os ombros e saberá secá-las com a sua própria roupa.

Quando o coração doer vai espetar o dedo na ferida. Quando tudo ameaçar um fim, reinventará um novo inicio. Quando a magoarem saberá, por fim, dizer basta, e sem mágoa, desejar um outro mundo inteiro, um outro mundo novo, de felicidade, saúde e amor.

Maria-confidente. Maria-amiga. Maria-metade. Maria-irmã.

Maria sorridente sempre, para sempre, presente.

12 junho 2012

Para onde vão os gritos?

E se acercam, desaparafusadas, as ideias da vida, da morte, da origem, do credo, da raiz.

Para onde vão os gritos? Para onde, dizei-me rogo-vos, vão os gritos que golpeiam a garganta e o estômago, e as vísceras. O invisível, o intocável. Para onde?

O vento? Ah, deixai-o estar, deixai-o permanecer sossegado no seu rodopio, nas horas de prazer que retira das melodias rachadas que fabrica à sua passagem. Não se engane, não o culpe coitado, que o bode expiatório tem de ter carne, e ossos, e pele, e sentimentos, e lágrimas e morte.

Deixai o vento e a brisa, deixai-os a todos no seu curso tranquilo, já vos disse, não é para lá que os gritos vão.

E a água? Sugeris porventura que é em fluido que se vão passear? Que inocência, que pequenez, que doces ideias delirantes criais para vos embevecer-vos com o desespero.

Que teoria romântica praticais, porque não julgais vós que é também nos lírios dos campos, nos girassóis girantes, nos nenúfares de um lago, que o brado se vai recostar?

Porque então não achardes vós, que tanto sabes acerca do grito, que ele se não fica dormente sobre uma nuvem e que depois se deixa entorpecer e morre imperturbado como perecem os dias?

Que dizes, ó erudito, que sátira pretendes conceber por meio de teorias líricas e romanceadas de um rugido que te sai de dentro do mais fundo, mais negro, mais tenebroso e mais pavoroso que carregais no peito?

Ah, pensador presunçoso, por que livros, que mestres, que doutrinas te formastes?

Não sabes ainda, e talvez não venhas nunca a descobrir que o brado está dentro, vem de dentro e fica dentro. Nunca te desenvencilharás do negrume e da sofreguidão de que padeces.

Os nossos fantasmas, melancolias e desalentos, habitarão de forma imortal, para lá dos nossos corpos esgotados e tomarão, infinitamente, a forma do mais rude, sofrido e penoso grito.

06 junho 2012

"Navios" de Alexandre Gonçalves

"O que é que me interessa o navio que navega, que flutua, que sobrevive?
Interessa-me é o navio que se está a afundar mas que resiste, o navio que se afoga mas que ainda não morreu, o navio perdido que ninguém sabe onde está, o navio que está no fundo do mar há anos e anos.
Interessam-me os poucos peixes que cruzam no seu trajecto já submarino, interessa-me como se agarra à vida e cria uma vida nova. Já submarina, mas que ainda não sabe como vai respirar, se vai respirar.
E no mar, descobre o azul, descobre a água, descobre o infinito. Os que estão satisfeitos? São meus amigos também. Mas agora não vou pensar no amigo satisfeito, vou pensar nos que já não conseguem manter a cabeça fora de água.
A tempestade submergiu-nos, e o que fazemos hoje é arrancado de nós com sofrimento. Aquela vida normal, tão normal, que também somos obrigados a viver, custa-nos, durante uma grande parte do tempo custa-nos. Não nos peçam para aceitar, para achar que é o melhor possível, para nos resignarmos, para repetir que melhor é impossível.
Eu sei, não nos percebem. Também não vou explicar. Vou só ficar com aqueles navios que se estão a afundar, e com aqueles que vivem no fundo do mar há muito tempo.
Não somos perdidamente felizes, infinitamente felizes, simplesmente felizes. E repete a voz, e repete, e repete: "mas melhor não é possível, melhor não é possível, melhor não é possível".
Eles que repitam, eu vou tentar, eu vou procurar, eu vou fazer. Já faço."

04 junho 2012

Profundo horror

Há dias em que é o medo, um terror muito grande que nos digam que não é real aquilo que é real.
Que o toque não exista, que os cheiros sejam ilusões sensoriais, que o que escutamos esteja camuflado pela gritaria que vem do andar de cima.
É preciso escutar aquilo que está nas entrelinhas, saber exactamente que cartas temos em cima do tampo da mesa. Compreender a neblina por detrás do brilho do olhar.
Para tudo isto é necessária uma sensibilidade e uma ternura pelas coisas quotidianas tremendas. E é tremendo que se pousa o pé nas ripas de madeira do soalho, ainda sem se saber se é frio ou calor aquilo que se vai sentir.
Como pegar num lápis e o pousar numa folha em branco. Antes de ele se mover há um momento de profundo horror. Pode durar milésimas de segundos mas dentro dele, ao longo de todo esse instante, condensam-se questões que se atropelam em catadupa na cabeça.
O que faz sentido, o que se quer dizer, o que se sente, o que não se sente. Aquilo que vou encontrar depois sou eu ou é outra qualquer?
E se eu não gostar dela ou pior, e se eu não gostar de mim? E se eu sentir repulsa por aquilo que eu vou ser depois do lápis se mover de forma esquizofrénica?
A folha deixa de ser branca e torna-se feia por isso. Não são só letras, não. Antes fossem. Sou eu nua, despida, vulnerável, fraca, tímida, tão somente humana e tão ridiculamente pequena.
E não sendo eu, quem será? E porque se mete dentro de mim e me faz sujar esta imaculada brancura? Que me interessa a mim aquilo que ela me diz, se ao menos fossem só palavras.
Ah! Se ao menos fossem só rabiscos, letras mal desenhadas, escritas à pressa com medo que o tempo fuja e não chegue, que escape entre as linhas e fiquem coisas por dizer...
Estas palavras, as que não são só palavras estão minadas, estão cheias de perguntas, não sabem quem são, para o que servem ou a quem pertencem.
É isto que acontece nesse momento, naquele que precede o movimento do lápis e de algum modo o pode vir a transformar em algo bonito e coerente.
Não foi bonito, nem tão pouco coerente, mas foi honesto. E, já se sabe, a honestidade é uma coisa crua, sem arestas limadas ou princesas sentadas, com os seus longos cabelos ao vento, debaixo de uma amendoeira em flor.
Há uma tranquilidade solene quando se termina, finalmente, com um irrevogável, indiscutível, ponto final.

26 maio 2012

Pão, pão; queijo, queijo

Eu tenho um filho. Não, isso não interessa para nada, eu tenho um filho. Sim, claro, sou escritora, cronista, letrista, guionista, e nos tempos livres gosto de acreditar que também pinto, canto e danço. Não é nada interessante, eu não sou nada interessante. Sou a coisa mais banal que vais conhecer ao longo da tua vida inteira, tenho órgãos e sangue e ossos e pele, como como toda a gente, fumo muito (o que é um péssimo hábito), apanho autocarros, acordo com o cabelo desgrenhado, tenho ramelas, há dias em que honestamente detesto o meu corpo. Não sou nada interessante.

Não, não me estás a ouvir. Eu tenho um filho. Não posso embebedar-me todos os dias até à quinta casa, não posso ir de férias sempre que me apetece, não posso ficar acordada a ver filmes até ser dia, todos os dias. E esse filho também tem um pai, e esse pai é importante na medida em que tenho um filho dele, uma história infinita da qual não me vou ver livre nos próximos anos. Vou falar com ele muitas vezes, não vamos discutir, porque nós não discutimos. Vou ser amiga dele, amiga a sério, de vez em quando vamos rir-nos muito, também vamos chorar, vamos falar da família um do outro. Nunca mais vamos para a cama um com o outro, isso nunca. Mas ele, taco-a-taco com o meu filho, vai ser um homem que não vai desaparecer da minha vida.

Eu sei, eu sei que gostas de mim. Mas não me estás a ouvir com atenção. Além de ter um filho, de ter um pai do meu filho, também tenho rachas dentro da alma. Penso muito na morte, fumo mais cigarros, tenho insónias, fico acordada até de manhã à janela a ver nada, a ver vazio, a ouvir os carros passarem na estrada. Depois disto tudo há a musica e o silêncio. Eu gosto dos dois, mais que gostar, preciso deles. Tenho dias absolutamente insuportáveis, em que cito muitas vezes

[“Não sentir ninguém nem falar nem me ver obrigado à condescendência ou à fraternidade. Um egoísta. Deixem-me. Não vou amar o mundo. Estou-me nas tintas.”]

e estou mesmo.

Gostas de mim? Ainda gostas de mim? Porque é que tu gostas de mim? Não gostes de mim, faz-me lá esse favor. É que se tu gostas de mim, eu vou ter de gostar de ti, e depois tu deixas de gostar de mim, e eu não vou ser capaz de deixar de gostar de ti. Porque os sentimentos me ficam agarrados à alma. E depois, com todas estas coisas, eu fico sem coração suficiente para continuar a ter um filho, um pai de um filho, a ser escritora, letrista, guionista, e aos poucos deixo de acreditar que sei pintar, cantar ou dançar. Depois eu fico um corpo esquecido de existir. Não gostes de mim. Eu vou fazer-te mal.

Não sejas parvo. É mais que óbvio que gosto de ti, isso vê-se logo. Mas quero que saibas aquilo que eu sou, que não te enganes, é horrível uma pessoa que gosta de outra pelos motivos errados.

Gostas mesmo de mim, certo, já percebi, não me grites, que eu não gosto de gritos. Mas escuta com atenção, depois não digas que eu não te avisei.

25 maio 2012

“Estilo” de Herberto Helder

“ Se eu quisesse enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende? …a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas, meses ou anos?”

...e já sei que me vou arrepender.

- Bom dia, alegria!
- Só se for para ti. Quem era aquele gajo que veio contigo para casa ontem à noite?
- Desculpa?!
- Tu ouviste bem o que perguntei. Não te armes em cabra...
- Mas tu agora controlas aquilo que eu faço? Era o que faltava...
- Com o basqueiro que fizeram, acho que todo o prédio ficou a saber. Não me parece que tenhas querido fazer segredo nenhum.
- Não é um segredo, mas também não é da conta de ninguém, muito menos da tua.
- Então podias ter feito menos barulho... Acordaste-me.
- Oh, não me chateies, dói-me a cabeça.
- Imagino, não parecias nada sóbria...
- Mas qual é a tua? 'Tás a armar-te em palerma?!
- Não me vais dizer quem é ele?
- Sei lá!
- Não sabes?!
- Deves ter muito a ver com isso, tu.
- Até tenho...
- Tens?
- Tu gostas é de mim.
- Hm hm, mas tu não me fodes, tenho que arranjar quem o faça por ti.
- Essa era escusada.
- Disse alguma mentira?
- Se o que queres é ser fodida, trata-se já disso.
- Cala-te!
- 'Bora lá... se é isso que te falta...
- Se é isso que me falta faço-o com quem me der na real gana e com quem, no dia seguinte não desapareça da minha cama e me deixe o coração em papa.
- Certo, é justo.
- É justo?! Mas tu és idiota? Ando a quecar com um parvalhão diferente todas as semanas, digo-te com todas as letras que o faço porque me deixas o coração feito em merda, e tu dizes que é justo?
- Hm hm
- Vai-te foder!
- 'Bora?
- 'Bora... mas é a ultima vez, ouviste?
- Hm hm, a última antes da próxima...
- Odeio-te!
- Não odeias nada. Tu amas-me!
- Hm hm, 'bora lá... antes que me arrependa.

... e já sei que me vou arrepender.

24 maio 2012

"Xanax azul-violeta" de Pedro Paixão

  "Deixei-me encurralar aqui. Não posso regressar a nenhum lado, a tempo algum. Nadja desapareceu de um dia para o outro. Todas acabam por desaparecer. Mais vale assim. Uma mulher a fugir é mais bela do que uma mulher parada. Nem a morte quis vir ter comigo, quanto mais o amor.
  Tento acalmar-me. Derreto um Xanax azul-violeta debaixo da língua. É verdade que estou em guerra. Estou em guerra porque estamos em guerra, não por vontade própria. Agora não tenho vontade própria, estou demasiado cansado. Já fiz o que tinha a fazer. Já perdi o suficiente e não consegui. Sei que tu não tens culpa Maria, Joana e Lia. Eu sei de quem é a culpa. Sou eu quem deve carregar comigo. E tu fizeste bem em desaparecer, Tatiana. Quem te agarra o corpo tem mais sorte do que eu. Eu sou pior. Quero logo a alma junto com o corpo. É um tremendo negócio. Meu amor, minha querida. De quem falo? De ti, claro, Maria, Lia e Joana.
  Maria, de pele macia, porque me mentias ao dizer que me amavas? Não bastava o resto, a vida inteira. Querias-me só para ti e depois não sabias o que fazer comigo. Na última noite beijaste-me como se fosse a primeira e no dia seguinte abandonaste-me na rua. Como pudeste? Ainda hoje não acredito. Por ti enlouqueci várias vezes para poder voltar a ficar lúcido.
  Joana dos cabelos encaracolados, muito pretos, a dançar à frente dos meus dedos. Joana fugidia, áspera, violenta. Nunca soube dizer quem eras e tu não tinhas paciência para a minha demora. Voltavas para as tuas amigas sem desculpas. Deixavas-me com um rasto do teu corpo, do toque dos teus cabelos, e escapavas. Quando me entreguei por completo já não me querias. Era tarde para tudo, dizias. Lia dos olhos suaves, enganadores. Mulheres como tu deviam trazer um aviso de morte. Nem o teu namorado gostava de mim, quanto mais tu. Deitada ao lado dele pensavas em mim. Mas não estavas disposta a arriscar tudo de uma só vez. Por isso deixaste que o amor viesse e não durasse, suave rapariga.
  Maria diz que Lia não é Joana. Mas engana-se. Joana é Lia por não ser Maria. E Maria sempre foi Lia e Joana.
  Levanto-me da cama e vou até ao quarto de banho. Fico a olhar-me no espelho a ouvir o barulho da água. Tenho de aguentar. Vou aguentar. Não é a primeira vez, não será a última. Uma história não tem fim, se no fim acaba a história.
  Toca o telefone. É Rony. Diz-me que vá passar uns dias de férias ao Sul, onde abundam as mulheres desconsoladas. Ou então ao Norte, nas cidades fortificadas. Arranja tudo por bom preço, pacote especial e coisas dessas. Rony, estou cansado. Não quero ir para nenhum lado. Vou ficar aqui até chegar o dia. E depois parto. Vim para acabar com a poesia e a poesia está a dar cabo de mim."

23 maio 2012

Diz-se por aí...

Foi sempre assim.
Iam jantar fora entre uma a duas vezes por semana. Pediam sempre o mesmo
[polvo à lagareiro para ela, bitoque para ele].
Enquanto esperavam permaneciam em silêncio, ele escrevia num caderno, ela desenhava na toalha de papel sobre a mesa.
Sobre pedirem sempre o mesmo prato ele gostava. Ela não.
No final da refeição discutiam sempre acerca de quem haveria de pagar a conta. O empregado, já habituado, ficava de longe a ver num misto de indignação e divertimento, pedaços de pão a voar pelo ar, e de uma ou outra vez, um copo partido no linóleo do chão.
Quando a discussão terminava sorriam, beijavam-se e saíam sempre sem pedir desculpa.
Percorriam o caminho até casa um em cada berma da estrada. Em silêncio. Ela gostava. Ele não.
Ao chegar, ele já cansado de escrever e ela farta de desenhar, faziam amor e fumavam cigarros a olhar um para o outro, até que o cansaço levasse a melhor. Adormeciam estranhamente abraçados. Ele gostava. Ela também.
Um dia, já o sol ia alto, ele perguntou-lhe porque não compravam uma televisão, e ela disse-lhe que a televisão emburrecia. Ainda assim, no dia seguinte, ele comprou um aparelho e, quando ela chegou a casa ficaram muito tempo em silêncio a olhar para aquela caixa preta, desligada.
Decidiram não pensar muito no assunto e foram jantar fora. Escolheram os mesmos pratos, discutiram sobre a conta, sorriram, beijaram-se, saíram sem pedir desculpa, regressaram a casa em bermas diferentes. Em vez de fazerem amor quiseram experimentar ver televisão.
Uns meses mais tarde, reza a história que ela deixou de desenhar e ele de escrever. Que deixaram de fazer amor. Que passaram a ir as mesmas uma ou duas vezes por semana jantar, mas ao McDonald's. Que em vez de discutirem acerca da conta, passaram a discutir de forma acesa, sem direito a beijos ou sorrisos, sobre qual o programa que um ou outro queria ver.
Diz, quem os conheceu, que se separaram eventualmente, e que a partilha que mais luta deu foi precisamente a caixa preta. Optaram pela custódia partilhada, quinze dias com um, quinze dias com outro.
Na primeira noite em que ele ficou sem a televisão lembrou-se que ela lhe tinha dito, antes de tudo ser destruído, que a caixinha emburrecia. Foi a casa dela e quando lhe bateu à porta, com o objectivo de agarrar na televisão e a deitar no primeiro contentor que encontrasse, ela lhe gritou lá de dentro
- Agora não, que estou a ver a novela!
Rendido e frustrado pegou no carro e foi ao McDrive, pediu um menu com batatas e bebida grandes, e se foi sentar a porta de uma loja de electrodomésticos, a ver várias caixas pretas piscarem.
Nunca mais ninguém os viu, mas as más linguas dizem que ela acabou por morrer de doença prolongada, daquelas com aqueles nomes enormes e estranhos, que o ZéPovinho comummente chama de "burrice crónica", e que ele, que voltou a escrever, editou um best-seller de seu nome "Merda da televisão".
Mas eu não sei de nada. Isto são as pessoas que falam, que contam histórias e acrescentam-lhe pontos, já se sabe.
A minha teoria é a de que eles, ainda antes de tudo ser destruído, fugiram juntos para o Nepal e que lá estão até aos dias de hoje.
Mas não posso garantir nada. Afinal de contas, eu só cá vim ver a bola.