31 janeiro 2012

"Punhos Cerrados" News! (Distribuição)

Boas! De momento os punhos já estão a circular um pouquinho mais e além de estar disponivel no site da Fnac, no site da ChiadoEditora e fisicamente na Fnac Sta Catarina (Porto), estes são os outros locais onde o podem encontrar:

Braga:
Culturminho
Rua Dr. Francisco Duarte, 319
4715-017 Braga

Guimarães:
Culturminho
Praça Heróis da Fundação, 436
4810-242 Guimarães

Santarém:
Livraria Caminho
Rua Pedro Santarém, n.º 41
2000-223 Santarém

Aveiro:
Livraria Tricana
Avenida 5 de Outubro, 47/49
3810-082 Aveiro

Beja:
Livraria Avenida
Rua António Sardinha 11 -r/c
7800-447 Beja

Coimbra:
Livraria Papelaria 115
Praça 8 de Maio, 29
3000-300 Coimbra

Viseu:
Brincolivro-Artigos de Livraria e Papelaria Lda
Rua Alexandre Herculano 301
3510-038 Viseu

Lagos:
Livros da Ria Formosa
R D. Vasco Gama Edifício Vasco Gama-lj L,
8600-722 Lagos

Porto:
Livraria Graça
R. Junqueira 46 Póvoa de Varzim,
4490-519 Porto

Clube Literário
Rua Nova da Alfândega, 22
4050-430 Porto 

Livraria de José Alves
R. Fáb. 74
4050-246 Porto

Portalegre:
Nun’Álvares – Livraria e Papelaria
Rua 5 de Outubro, n.º 59
7300-133 Portalegre

Pombal:
Livraria Papelaria Soares
Rua Dr. António Fortunato Rocha Quaresma, n.º 13
3100-484 Pombal

Vila Real:
Livraria e Papelaria Branco
Rua Doutor Roque Silveira 95/97
5000-630 Vila Real

Lisboa:
Livraria Portugal
Dias & Andrade, LDA
Rua do Carmo, 70
1200-094 Lisboa

Obrigada, e boas leituras,

Beatriz Gil*

28 janeiro 2012

Memória Descritiva (Cap. I, parte III)

Quando nos deixaram ver-te finalmente, sempre individualmente, não mais que uma pessoa de cada vez e durante escassos minutos, fiz um esforço muito grande para segurar o coração dentro do peito e as lágrimas dentro dos olhos. Estavas ainda meio zonzo, provavelmente efeito dos comprimidos e calmantes e os teus olhos vazios, ainda meio para o lado de lá. Nunca compreendi se sabias que eu estava ali, quanto te toquei no ombro e disse “Diogo, filho”, tu estremeceste e os teus olhos procuraram os meus.
             Não tive força para segurar a linha invisível que nos unia o olhar e afastei-me para impedir as lágrimas de se soltarem. Desculpa por isso, Diogo, mas este teu velho avô foi um menino pequeno e teve medo, voltou à infância e, de repente, não eras tu ali deitado, era o meu pai com ar amarelado e doente, a cuspir sangue e a deixar, gradualmente, de respirar.
            Quisemos ficar para te levar para casa mas o mesmo enfermeiro que fingia empatia (como dizer-lhe que ele não percebia nada, que os anos de estudos podiam ter-lhe ensinado a dar injecções e a administrar medicamentos, mas que nunca lhe poderiam ter ensinado, porque não existe nenhum livro que ensine, a dizer adeus a alguém que se ama) a dizer-nos que terias que ficar em observação e que, depois disso, ainda terias que ir a uma consulta de psiquiatria.
            Imaginei-te sozinho e perdido naquele hospital frio, a acordares sem saber onde estavas e a não teres ninguém para te abraçar, como fizeste quando te perdeste na feira de Estremoz e te agarraste a mim com muita força quando o polícia finalmente nos encontrou. Imaginei-te a seres questionado e a teres a tua alma escrutinada por alguém que de ti nada poderia saber e que te olharia como mais um jovem decadente em busca de atenção.
            No carro do teu pai durante todo o caminho não dissemos uma única palavra, ouvia o teu irmão fungar e a esconder as lágrimas dentro do casaco e o teu pai com os olhos fixos na estrada, a tentar não acreditar. Lembro-me pouco do percurso, sei que via as pessoas passarem e os carros buzinarem e nada daquilo fazia sentido para mim.
            Quando chegámos a casa, a tua avó preparou um chá e ficamos todos muito quietos, sentados na sala. Um silêncio aterrador, a iminência do desastre, a cabeça de cada um de nós com certeza a formular e procurar todos os possíveis motivos para o que tinhas feito, em busca dos sinais que não vimos a tempo, mas que tinham que estar lá.
            A culpa, Diogo. Um sentimento de culpa muito grande por não te termos escutado com mais atenção. E a raiva por não termos estado lá para te obrigar a falar em de engolires o que sentias, a obrigar-te a tomar às toneladas o amor que temos por ti em vez dos comprimidos que engoliste, a obrigar-te a explicares-nos a origem do teu sofrimento em vez do teu pai sempre a dizer “Compõe-te rapaz. As raparigas não gostam de um homem sempre a chorar pelos cantos”, e a rir-se muito alto.
            Só posso imaginar como estas palavras te devem ter magoado, como as deves ter sentido como facas a espetarem-se na tua carne já tão aleijada. Mas sabes Diogo, não culpes o teu pai nem lhe guardes mágoa. Quando a tua mãe foi embora aquilo acabou com ele, julgo que tenha matado todas as esperanças e ternuras que ele tinha. Sei que fez o melhor que sabia. Ficar sozinho a criar três crianças e ainda ter que colar pensos rápidos no coração para não se esvair em sofrimento ao mesmo tempo, não pode ter sido fácil.
            Eu e a tua avó ajudávamos sempre que íamos podendo. Ficávamos com vocês muitas vezes e íamos buscar-vos todos os dias à escola, como tão bem te deves lembrar. O teu pai refugiou-se no trabalho porque vocês deviam recordar-lhe a tua mãe, e ele não sabia o que fazer com o vazio que ela deixou na vossa casa.
            Fomos viver convosco durante uns tempos, “só até que tudo volte à normalidade” dizia a tua avó, ignorava que a normalidade nunca iria voltar e que não adiantava ensinar o teu pai a cozinhar quando ele ia regressar e casa e nunca mais teria a tua mãe para o abraçar.
            Foi aí que começou a tua penitência? Julgo sinceramente que não. Eras muito novo e não te recordas provavelmente da tua mãe. Não quero com isto retirar valor ao peso que uma mãe tem, não me interpretes mal, mas tu reagiste bem, continuaste a brincar e a sorrir com os teus irmãos, e o sufoco que tínhamos por temermos o vosso bem-estar foi passando. Não, estou quase certo que tudo se precipitou depois daquelas férias.
            Quando finalmente recebemos o telefonema do hospital ficamos em suspenso a escutar as monossílabas do teu pai para o lado de lá e depois o grito dele “O quê? Ele fez o quê?” e uma lágrima tímida a escorrer-lhe por fim pela cara a baixo. “Compreendo, irei o mais rapidamente possível.”, e depois a pousar o telefone muito devagar e a dizer ao teu irmão que fosse juntar alguma da tua roupa enquanto ele ia buscar os teus produtos de higiene.
            A tua avó a ficar muito inquieta, sem compreender o que se passava e o teu pai sem responder a nenhuma das nossas questões, a andar rápido da sala para a casa de banho, da casa de banho para o teu quarto, a apressar o teu irmão e ele, coitado, sem compreender também mas a obedecer. Via-lhe as mãos a tremer e a deixar cair uma t-shirt com a pressa. A tua avó agarrada à tua irmã (ou a tua irmã agarrada à tua avó?) e eu a ajudar o Bruno. A tocar-lhe no ombro para o sossegar e a pegar na t-shirt caída no chão. Quando a segurei, lembro-me, senti o tempo parar de repente e uma serie de imagens tuas com ela vestida passaram pela minha cabeça.
            Chegámos ao hospital com a tua mala e uma enfermeira veio ter connosco, saber se éramos a família do Diogo Gomes e a indicar-nos o caminho.
            Sabíamos que tinhas atacado dois enfermeiros e um segurança quando acordaste e que te tinham injectado um calmante. A psiquiatra parecia considerar perigoso que regressasses a casa e ficarias internado alguns dias.
            Quando chegámos á porta do quarto o teu pai deu-me a mala e disse-me que não era capaz, que teria que ser eu a entrar. Não consigo ainda hoje explicar-te como me senti perdido quando rodei a maçaneta e te vi deitado naquela cama, preso a ela pelos pulsos e tornozelos.
            Abracei-te com todas as forças que tinha e choramos os dois durante muito tempo. Não queria deixar-te ali sozinho, a olhar-te nos olhos vi-te uma solidão muito grande, senti-me pequeno e inútil e fraco e pedi-te desculpa. Pedi-te desculpa todas as vezes que a minha voz me deixou até não restarem senão sussurros e soluços.
            Aquele quarto frio e cheio de fragmentos de coisas que não entendia, cheio dos destroços em que sentia te estavas a tornar, um medo enorme de te perder ali para sempre.
            Eu sozinho no olival a chorar. Devia ter cerca de 6 anos e caí de uma oliveira, com a perna partida era incapaz de andar. Minutos que pareciam horas e eu sempre sozinho, com muitas dores e já a julgar ficar ali abandonado para sempre, a criar dentro da minha cabeça ideias de fim e de morte, sem saber bem o que nenhuma das duas queria dizer. Tive medo como agora, de não ser capaz de me salvar do caos, a diferença era que naquele momento quem estava caído, perdido, sozinho e com dores eras tu e eu, velho, a amar-te tanto sem saber que a tua dor, o teu género de dor, não podia ser curada com analgésicos e gesso.

(TO BE CONTINUED...)

24 janeiro 2012

Se se perde a guita, perde-se a bala...

Ardem no teu peito fogos revoltados. Coisas sem nome, por não existir nome possivel para elas.
Filhos sem pai, por terem nascido da orfandade das coisas que se dizem corcundas de pesos que suportas sem apoio, de verdades que defendes sem palmadinhas nas costas, de medidas pelas quais te guias sem lhes dares a lógica do que tem lógica para todos, porque o que tem lógica para todos não faz sentido algum para ti.
Caminhas sobre pedaços de terra perigosos, deixas que a tua passagem seja tremida e levada pelo vento. Confias nos lugares bonitos e queres-los para ti, para ti, para ti.
Sabes que os dias têm peso, altura e estão velhos da idade que os teus olhos têm ao vê-los passar.
Não vês, tu, que o vento de que te acompanhas se deixa ficar à tua passagem? Não sabes que prendes, mordes, agarras, afastas, recuas, amas bem. Não há lados errados no teu coração, tudo é em conta certa embora levado ao limite, tudo falta e tudo encolhe, quando existes longe do que é real.
E se um dia o vendaval fugir para outros pastos, se o brado da terra te arrepiar para onde sejas mais feliz, peço e quero apenas e só que deixes ficar encostada à ombreira da minha porta uma aragem leve, uma brisa daquilo que foi ver as coisas com os teus olhos.
Que nunca te sejam cortadas as pernas, ou extinguido o fogo. Que nunca te demores tempo demais a julgar ser mais fácil transformares-te naquilo que querem, com tanta força, que sejas.
Na palma da minha mão, deixa só a caneta com que desenhas veleiros velozes de viagens que podes ainda amar.
Se o Sul te for tão forte que não saibas como percorrê-lo comigo, espero apenas, sem esperar, que guardes o cheiro do vento que de mim um dia se alevantou, e se foi aninhar na curva perfeita do teu corpo, onde, sem esforço, só porque fez sentido e era naturalmente certo, nos moldámos, um abraço atrás do outro, ao corpo de cada um de nós.
Salta uma ponte, bebe vinho por uma palhinha, e lembra só, de vez em quando, se o vento te levar, que se se perde a guita, perde-se a bala e no final, não se perde ainda tudo.

23 janeiro 2012

"Aqueles que andam por aí" de A.L.Antunes

"As pessoas não morrem: andam por aí.
(...)
Os cemitérios são lugares vazios, só árvores, sem defuntos, só a gente, que arranjamos as campas, sem entender que não existe ninguém lá em baixo. Para quê visitar ausências? Uns pardais nos choupos, nada. Que sitios tranquilos, os cemitérios, que inútil a palavra defunto.
Segredam-nos
-Não faleci, sabes?
e não faleceram, é verdade, continuam, não na nossa lembrança, continuam de facti, pertinho. Quase sem ruido mas, tomando atenção, percebem-se, quase não ocupando espaço mas, reparando melhor, ali, iguais a nós, tão vivos.
Andam por aí, pertencem-nos, pertencemos-lhes, não deixámos de estar juntos: quando é necessário poisam-nos a palma no ombro.
(...)
Não faço nenhum livro agora, ando vazio, e o vazio começa a inquietar-me. E se isto acabou? Terei secado? Apareceu uma coisa mas não dava, de maneira que fiquei sem nada.
As falsas partidas, os equívocos, pensar que se consegue e não se consegue. O que julgarão desta impotência aqueles que andam por aí?"

14 janeiro 2012

"Punhos Cerrados" News! (Critica)

Critica ao livro, por Fernando Gil:

         "A princípio, não como dizem, não é a folha branca ou o monitor a piscar vazio que metem medo, que emaranham as palavras e deixam suspensas todas as frases possíveis de escrever.
        Todas as folhas brancas esperam, aguardam que o escritor arrume as gavetas da memória, organize a ordem no estendal das ideias, brigue com os fantasmas camuflados de silêncio e se arrisque a falar dos segredos escondidos na alma.
        A princípio, não como dizem, é nas entrelinhas que os escritores se despem, não nas histórias. Cada espaço de frase, contem a impressão digital, o texto invisível que diferencia e faz da história o objecto único, raro, individual.
        O medo está aí, expor-se até onde? Como resguardar o irrevelável de nós?
        “Punhos cerrados” é uma história com elevado grau de acidez, um Gin sem água tónica onde o gelo não refresca, apenas nos golpeia a língua em farpas sólidas.
        Beatriz Gil, tu e apenas tu, capaz de escrever assim esta história. Única, cirúrgica de mágoas e angústias, não exposta mas esventrada até ao sangue de todas as dores, de todos os desencontros com o sorriso. “Esta não é uma história feliz mas é, sem dúvida alguma, uma história honesta, mágica e sincera.”
        Esta não é uma história feliz mas essa infelicidade contem o importante, a grande felicidade de teres em ti a arte de bem escrever.
        A princípio, não como dizem, essa impressão digital, essa exclusividade de sentir única, faz da tua escrita um corpo inteiro, um prumo vertical de respeito, de admiração.
         Escreve, assim sempre, inteira. Deixa-me dizer-te também, para que conste no estendal das ideias, as vidas e as histórias felizes são quase sempre imbecis."
Uma vénia, porque esta critica merece todos os agradecimentos do mundo, e quando alguma coisa tem assim tanta importancia, um "obrigado" não chega, mas uma vénia deixa escorrer aquilo que vai dentro e quer fugir para fora, uma gota de salgado*

Memória Descritiva (Cap. I, parte II)

Isto para te explicar, Diogo, que eu também já tive o coração partido, passei semanas a tentar compreender o porquê de ela nem um sorriso me ter dirigido e vê bem onde estamos agora. Conheço-lhe todos os traços, sei-lhe o sorriso de cor e aprendi que a tua avó, que continua sem saber lidar com os assuntos do coração, quando gosta muito de alguém foge-lhe do olhar. Amo-lhe essa faceta, se não fosse pela suposta indiferença com que me tratou na noite das rifas não estaríamos casados agora, quase com 50 anos de aliança no dedo.
Para mim, que era um mariolas com a mania (todos tínhamos a mania naquela altura), ela teria sido só mais uma conquista e rapidamente teria seguido para outra, talvez aquela amiga da tua avó que se desfazia em risinhos sempre que eu aparecia, a Lurdes, conhece-la, a colega da avó que nunca casou e vive na rua abaixo da nossa.
            Não contes esta minha inconfidência à tua avó, mas sempre julguei que se lhe tivesse dado troco seria ela, e não a tua avó a levar comigo todos estes anos.
            O amor tem destas coisas, embrulha-se em nós sem que nos apercebamos e quando damos por ele já se nos agarrou à pele e à alma. Do verdadeiro amor, Diogo, temos muito pouco a dizer.
            Quando chegamos a velhos acabamos a julgar que todos os que têm menos idade que nós não sabem nada da vida ou do amor, e eu cometi esse erro crasso contigo, ao julgar que eras demasiado novo para teres um desgosto amoroso, por isso fiquei tão surpreendido quando soube que era essa a origem da tua mágoa.
            Quando começaste a baixar as notas e a faltar às aulas, julguei-te numa típica fase de rebeldia, a revoltares-te contra os teus pais e com o sistema. O teu pai queixava-se de que chegavas a casa a tristes e más horas e que nunca falavas, enfiavas-te no quarto e a tua aparelhagem berrava músicas que falavam da escuridão e do abismo. Enganei-me novamente.
            Depois das férias começaste a fazer voluntariado no IPO e eu fiquei mais tranquilo e orgulhoso de ti. Via-te um pouco mais feliz e entusiasmado, se bem que a sombra no teu olhar nunca a vi desaparecer.
            Uns meses mais tarde a noticia de que uma das crianças com leucemia tinha morrido e tu a deixares de ir, a comunicares o que tinha acontecido com lágrimas nos olhos e a nunca mais quereres falar sobre isso. A sofreres mais uma vez.
            Como de costume todos julgámos que aquilo passava, o teu pai sempre sem entender e a dizer que só “te estavas a deitar na cama que tinhas feito”, “Compõe-te!”, dizia ele, e tu sem sequer olhares para ele, a fingires-te um corpo que acidentalmente se tinha esquecido de existir.
            A tua avó ficou um pouco preocupada, dizia que estavas tão magro que até metia dó, fazia muitos bolos que deixavas a ganhar bolor, nem lhes tocavas.
            A tua irmã, mais nova e inocente e por isso a mais sábia de todos nós, era a única que deixavas entrar na tua clausura. Por algum motivo ela compreendia o teu silêncio, e deixava-se ficar deitada ao teu lado na cama até acabar por adormecer.
            Uns dias mais tarde o telefonema do teu irmão a dizer que estava no hospital, que te tinhas tentado suicidar.

“Estar sozinho é treinarmo-nos para a morte”, ouvi Louis-Ferdinand Céline gritar aos meus ouvidos.
           
Para mim foi um choque tremendo, mais do que imaginar a tua dor, não consegui compreender as tuas motivações. A tua avó ficou perdida, a sua concepção do mundo através dos ensinamentos da religião diziam-lhe que a mera ideia era inconcebível, uma atrocidade. Chorou, muito agarrada a mim.
            Metemo-nos num táxi e quando lá chegamos não nos deixaram ver-te, “só pais” dizia o enfermeiro que fingia empatia, e eu a querer dizer-lhe que só tinhas pai, que a tua mãe há muito havia desaparecido e que eu, que era teu avô, te era pai muito mais que duas vezes.
            Ficámos muito tempo naquela sala de espera fria, cheia de pessoas que não compreendiam, tal como nós, os desígnios da vida. Os médicos passavam a correr sem nunca olharem para nós.
            O teu irmão desfazia-se em mil telefonemas, a avisar toda a gente. Confesso, Diogo, que quis pará-lo, dizer-lhe que achava que tu não quererias que meio mundo soubesse do que tinhas feito, por certo confundiriam tudo e julgariam um sofrimento profundo e atroz por fraqueza e cobardia.
            Eu não sabia porque o tinhas feito, nem como, nem onde, mas sabia que se havia coisa que tu não eras era fraco ou cobarde. Por isso quis tirar-lhe o telefone da mão e atirar com aquilo pia abaixo.
            A tua avó, que sempre me compreendeu os gestos e tiques, a segurar a minha mão e a apertá-la com força, a impedir-me. Agradeço-lhe agora, sei que o que ele fazia não era gritar aos quatro ventos que te tinhas tentado suicidar, pretendia apenas dividir a ideia da morte com alguém, amainar a dor através da partilha.


(TO BE CONTINUED...)

11 janeiro 2012

Nova ode ao silêncio

Hoje não me apetece falar. Nem ouvir.
Só quero pegar no ruido na palma da mão e engoli-lo.
Calar o mundo, emudecê-lo. Zangar-me com ele como se fosse uma criança, mandá-lo dormir.
Hoje só o silêncio, só as vozes dentro de mim. Todas. Os pulmões ofegantes. O coração ritmado. O estômago a deglutir o resto do almoço. O meu amigo imaginário a olhar-me de soslaio e a contar-me tod a a verdade acerca de quem sou, como só ele o sabe fazer.
Hoje só eu e ele.
Se o mundo emudecer, amigo, prometo que não discuto contigo, prometo que não contra-argumento.
Juro que te dou razão e escuto atentamente enquanto me dizes que não vale a pena, que não merece o esforço, que se me embrulho em lençóis de arame farpado é porque fui eu quem os teceu. Que devo retirar daí o meu cavalo e pregar para uma freguesia de onde se veja o Sol bater no rio e onde as pessoas só saibam falar de amor.
Juro, amigo que existes dentro de mim, amigo que entendes, amigo que não me temes nem julgas, mas que me esfregas a verdade no rosto, que sou até capaz de te dar a minha mão, de sorrir-te muito, de transformar a nossa relação amor-ódio numa em que só mãos dadas e olhares cumplices.
Só eu e tu e a nossa verdade. As nossas cicatrizes e nós a rirmo-nos delas. Eu a lamber as tuas e tu a lamberes as minhas.
Mas tem paciencia, mundo, cala-te só um bocadinho.
Encosto o rosto à janela e não sinto nada. Passo os dedos sobre o papel e ele não fala comigo. Deixo-me ficar muito tempo no chuveiro mas a água que escalda não aquece. Vejo as noticias e nada me comove.
O burburinho constante mata aquilo que importa.
Hoje quero saber a verdade e gostar dela.
Hoje quero aceitar com naturalidade que se o mundo não se cala, eventualmente esgotada calar-me-ei eu. Sempre. Para sempre.
Eu e tu, amigo. Eu e tu, em silêncio. Eu e tu dentro do mesmo único corpo. Vamos, agora.
Se o mundo não se cala, juro que quem se cala sou eu.

Começar a contar-nos ou Quedas no empedrado

Mais um frasco partido no chão.
Era assim que pretendia começar a contar-nos. Há que começar sempre por algum lado e como em tudo, nunca se sabe exactamente e com toda  certeza como irá, eventualmente, terminar.
Eu acreditava em fadas e na vida eterna e além disso, acreditava que se o dissesse com veemencia suficiente isso seria efectivamente verdade.
Tu acreditavas nas viagens sem rumo ou planeamento, e neste, como em tantos outros pontos, sempre estivemos de acordo.
Quando se viaja, viaja-se em busca de algo que só sabemos descodificar depois de regressarmos ao ponto de partida e surpreendemo-nos ao compreender que, muitas das vezes, é exactamente o retorno que nos fazia falta. Sentir o retorno como uma finalidade.
Saber que não se pertence de facto a sitio nem coisa nenhuma mas, ao mesmo tempo, termos a mais pura certeza de que não querendo ou podendo continuar, podemos sempre ter um sitio para onde possamos dizer que vamos regressar.
Voltar, no seu sentido mais lato, nunca é fácil. Tenhamos partido por anos, meses ou horas, o "voltar" implica quase sempre sentir que estamos, inequivocamente, acorrentados a alguma coisa
[um móvel, uma panela, uma estante ou uma pessoa].
Exige de nós que nos armemos em malabaristas de praça e retomemos uma série de hábitos aos quais nem sempre é simples retornar
[rodar a chave na fechadura que empana, colocar a carteira na cómoda da entrada, ligar o televisor só para que nos sintamos acompanhados, aquecer a água para bebermos o chá que sabemos ir beber sozinhos].
E é por isso que no mais das vezes á fácil, demasiado fácil partir. Usar o "partir" como um espairecer, um rosto novo que nos dá os bons dias, uma porta diferente com veios macios de madeira tratada, ruelas mal iluminadas cheias da mistica que julgávamos apenas sonhada.
Mas partir só é bom quando, ainda que não regressemos, sabemos ter algo para o qual retornar.
Não deixa de ser um equivoco esse de querer viajar sem rumo. Só viaja sem rumo quem não tem quase nada a perder, quem não tem na base
[um móvel, uma panela, uma estante ou uma pessoa].
Ou quando, tendo tudo isto, nenhum dos acima mencionados merecem de nós o nosso tempo, carinho ou sacrificio.
Quem viaja sem rumo tem o coração a transbordar, tem os pulmões cheios de uma matéria invisivel com se tecem os desejos, tem nas mãos os calos dolorosos daquilo que construiu sem brio, sem extase ou gozo.
Viajam sem rumo os que amam e querem demais. Os que caem nas esquinas ou na calçada por não terem tempo para olhar o chão, só o infinito dentro da cabeça
[fadistas de bares escuros e escondidos, ruas desertas de frio nocturno, desenhos piturescos de revolta pessoal, acordes de musica que chegam do outro lado do mundo].
Quem viaja sem rumo há-de fazê-lo até que lhe doam os pés, até que lhe falte a voz, até que deixe de doer dentro.
Mais um frasco partido no chão.
Era assim que pretendia começar a contar-nos.
Mas por enquanto ainda não há nenhum frasco partido em parte nenhuma, por isso a minha mão preferiu guiar-me por viagens sem rumo.
Agora, depois de tudo o que foi dito, talvez esta seja, afinal de contas, a melhor forma de começar a contar-nos.

02 janeiro 2012

Memória Descritiva (Cap I, parte I)

Quero que o dia da minha morte passe depressa na tua memória.
            Quando ficamos velhos começamos a sentir-nos a mais, tal e qual como na tua juventude, quando os amigos não partilham todos os segredos, quando te deixam sentado no banco como suplente ou quando são sussurradas coisas à tua frente sem que saibas o seu conteúdo.
            Do nosso afastamento, juro, sei muito pouco. Compreendi que tenhas decidido seguir esse caminho porque também eu já fui assim, rebelde e sem rédeas, mas confesso que julguei que acabasses por regressar. È claro que o teu pai não soube lidar com as coisas da melhor forma, sempre a pedir que não te mencionássemos, a afirmar que não te telefonaria e que eras crescido o suficiente para suportares o peso das consequências dos teus actos.
            Claro que não eras, mas lembro-me de te ter invejado a audácia, as asas a crescerem-te nas costas.
            Ias passando cá por casa muito poucas vezes, sempre quando o teu pai não estava e sempre de fugida. Davas um beijo rápido à tua avó e o teu aperto de mão, senti-o tornar-se mais forte mas mais desprendido à medida que os anos passavam.
            Depois julguei que tu e o teu pai tinham feito as pazes, passaram a aparecer algumas vezes juntos, que é como quem diz a partilharem o mesmo espaço físico. Ninguém fez perguntas, se bem que a tua avó me incumbia da tarefa de tirar nabos da púcara, trabalho para o qual, como bem sabes, nunca fui talhado.
            A olhar-te agora, depois de todas as coisas que foram ficando por dizer, recordo-me dos dias em que me comecei a aperceber que algo de muito errado se passava contigo.
            Estávamos de férias em Porto Covo, devias ter cerca de 17 anos e enquanto os teus irmãos corriam para jogar à bola na areia, tu deixavas-te ficar debaixo do chapéu-de-sol connosco, os velhotes. Noutros dias ias sozinho para a esplanada e ficavas lá muito tempo com o olhar preso no mar.
            Comentei-o com a tua avó que logo desvalorizou a minha preocupação (compreendo agora que os teus sentimentos também), achava que estavas na idade do armário e se eu não me lembrava de ter tido a tua idade. Não me descansou, confesso.
            À noite ouvia os teus passos no corredor até à cozinha. O frigorífico a abrir e a fechar e o som do isqueiro a acender os cigarros que até então nem sequer sabia que fumavas.
            Andavas triste. Saias à noite com os teus irmãos e o vosso grupo de amigos, mas no dia seguinte não te via entusiasmado como eles, a contarem entre risinhos abafados as aventuras da noite passada.
            Adivinhava-te o cheiro a álcool no hálito quando chegavam às tantas da madrugada e eu sempre sem conseguir dormir, ralado de preocupação. A tua avó, essa, dormia que nem uma pedra, dizia que vocês já sabiam o que faziam e que para ralações dessas já lhe tinham chegado as dos filhos, quanto mais chegar a velha e tê-las com os netos.
            As férias terminaram rápido e todos voltámos à nossa rotina.
            Como me arrependo de não ter prestado mais atenção aos primeiros e pequenos sinais. Como me arrependo de te ter deixado ir sem te dar um abraço à homem, daqueles em que não se diz nada, mas que deixa implícito que sabemos que algo de errado se está a passar.
            Quem sabe terias confiado mais em mim, no teu velho avô, e me terias contado o que te atormentava. Sem pressas, julgamentos, ou sermões moralistas, como sei que encontravas em tua casa, sempre sem tempo ou espaço para conversar ou partilhar momentos.
            “È a vida, não podemos deixar que ela nos apanhe, senão é que vai tudo pelo cano abaixo”, dizia o meu pai.
            Sabes, também tive uma infância, uma adolescência e juventude, não fui sempre assim velho, como agora (por muito que te custe crer). Também me fazia confusão, como te faz a ti, que as pessoas não tivessem tempo para parar e escutar, e que tínhamos que correr para a vida não nos apanhar, mas depois veio o emprego e a tua avó (alguma vez te contei a nossa história?), o teu pai e os teus tios, as contas para pagar, a vida, eventualmente, a apanhar-me.
            Sim, deixei-me apanhar por ela, mas não quero que julgues que foi o amor à tua avó que o provocou (sei como a ideia do amor te incomoda, sei-o só agora, espero que não seja ainda demasiado tarde), antes pelo contrário.
            A tua avó trabalhava numa fábrica de tecidos em Estremoz, passava todos os dias à minha porta com as amigas a caminho do trabalho e o riso dela ecoava pela rua até me encontrar. Depois deixou de ser o meu despertador, obrigava-me a acordar mais cedo e deixava-me ficar à espera de a ouvir.
            Algum tempo depois fazia todos os possíveis para sair de casa exactamente no momento em que ela lá passasse e seguia-a de longe. Ficava uma porção do caminho a admirar-lhe o andar, a ver a saia dançar-lhe na cintura e os cabelos a baloiçar nas costas, e a outra porção a maquinar artimanhas para falar com ela. Eram as melhores e as piores partes do meu dia, vê-la chegar e depois, 2 ruas e 3 cruzamentos depois, vê-la afastar-se no empedrado geométrico da estrada.
            Depois de meses desta perseguição escondida, vieram as festas da Nossa Sra. do Mileu, deves lembrar-te que em miúdo levava-te sempre lá, adoravas os carrosséis e da minha parte, adorava ficar naquilo a noite toda até o senhor nos obrigar a ir embora, e tu, contrariado, a obrigares-me a prometer que lá voltaríamos no dia seguinte.
            De qualquer modo encontrei a tua avó na barraquinha das rifas e gastei quase metade do meu ordenado a comprar aqueles papelinhos às cores, tão bem enrolados, cheios de segredos dentro. Levei para casa um conjunto de chávenas e uma piaçaba e da tua avó, nem um olhar.

(TO BE CONTINUED...)