30 abril 2012

Não te esqueças que já te disse...

Queres honestidade, sinceridade,verdade. Todas essas coisas nas quais tens um vicio quase doentio. Não é?
Eu não te sinto a falta. Gosto de ti, tens piada, o teu desempenho sexual é bom, julgo-te inteligente, interessante. Tens bom gosto no que toca a música, roupa, arte e cinema, é certo. Gosto de ti.
Gosto de ti mas não te sinto a falta.
Fomos estando juntos, partilhámos casas, tachos, carro, viagens, dias e noites. Fomos estando juntos na medida do possível, do que foi fazendo sentido. Do que foi fazendo sentido ali, naqueles dias e naquelas noites.
Eu tenho uma vida e tu tens outra. Eu estou aqui, e tu estás aí.
Anda, não quero fazer-te sentir mal, não quero que chores. Por favor, não chores. Ou chora, mas não chores agora. Agora não. Agora estou a dar-te aquilo que me pediste, não queiras o braço todo que eu não tenho paciência para dramas.
Não tenho saudades tuas, posso pensar em ti volta e meia, posso até beber um copo a mais e achar que era mesmo bom que ali estivesses, mas tu entendes que não és nenhuma criança, é a libido a falar, e mais nada.
Não te digo estas coisas para te magoar, afinal de contas gosto de ti, não te quero fazer sofrer e não quero que julgues que sou um filho da mãe insensível sem escrupulos ou bom-senso.
Eu sei, que também não sou nenhuma criança, que das vezes em que te falhei tu ficaste triste, que esperaste que estivesse presente, que tivesse ao menos feito um esforço para isso. Sei que esperas que o telemóvel pisque de quando em quando, e que no ecrã esteja o meu nome. Sei de todas essas coisas e mais algumas que agora não vou estar a dizer porque eu sei, e tu sabes, e mais ninguém tem que saber.
Gosto de ti. Mas não te sinto a falta.
Se te sentisse a falta não olhava mais que uma vez para outros olhos que não os teus, ou podia olhar, mas não os procurava para mais nada. E procuro. Se te sentisse a falta o teu telémovel piscava mais vezes, não achas?
Tem paciência, no fundo sabes que o que eu digo é verdade, e que já o sabias, mas como em tudo, tinhas que o ouvir da minha boca. Compreendo isso também.
Agora que já sabes com que linhas te coses e com quantos paus se faz a minha canoa, queres vir dormir lá a casa?
Oh...não sejas assim, anda lá... vem dormir a minha casa. Deixa-te ficar o tempo que quiseres, mas não te esqueças que já te disse, e que não me podes pedir mais nada, gosto de ti, mas não te sinto a falta.

26 abril 2012

Não sejas estupido

Há um momento, uma altura, em que toda a tua vida fica em cheque. Em que tudo muda. Não adianta negar, quem o negar é estupido ou ignorante. Eu tenho mais estima pelos estupidos. Espero que, caso o negues, sejas um deles. Os ignorantes pouco ou nada de interessante têm a dizer ou mostrar e não lhes existe salvação, são-no.
Quando a tua vida der esse salto peço-te, reconhece-o, ou tenta. Não te iludas, Não deixes que te digam que está tudo bem ou que eventualmente as coisas vão melhorar. Pior, não te deixes enganar pela ladainha de que retirarás algo de positivo ou que vais aprender com esse salto uma grande lição.
A única coisa que vais aprender, reter e que te vai perseguir o resto da vida (pode até fazer-te considerar acabar com ela) é que nunca o devias ter dado. E se há saltos dos quais podemos sair ilesos, outros há que não têm retorno. Faças o que fizeres, essa decisão de lançares as pernas para cima vai remoer-te as entranhas, vai fazer-te chorar, vai provocar-te nauseas, vai fazer-te sofrer.
Esse sofrimento não vai durar umas horas ou uns dias, vai durar a vida inteira. E mesmo que me chamem de extremista, de profeta da desgraça, e ainda que dê a semi-mão à palmatória e repare que a vida inteira é muito tempo, esse sofrimento pode durar anos. E esses anos ser-te-ão insuportáveis.
Vais querer sobreviver-lhe, claro. Vais querer acreditar que melhores dias virão e vais desejar com uma força desmedida acreditar que dali virão coisas boas e grandes ensinamentos.
Vais viver um dia atrás do outro, como se os vivesses num campo de batalha. Vais chegar ao final do dia exausto, feliz que o dia tenha finalmente terminado. Todos-os-dias.
Das coisas e momentos bons que os dias tenham, não saberás retirar-lhes o sumo porque o peso do salto vai estar sempre a abafar-te as emoções. A esmagar-te.
Vais sentir-te culpado por esmiufrares os momentos até ao tutano, por te obrigares, com tudo dentro calcado, cheio de nódoas negras e feridas abertas, a amares esses mesmos momentos, ainda que não os ames, na medida do possivel pode ser que os aprecies, mas quem pode viver só de memórias de remissa?
No exacto momento em que estiveres para dar o salto peço-te, não sejas estupido (e livra-te de seres ignorante), reconhece-o e afasta-te. Caminha mais um pouco, não te apresses no empedrado geométrico da rua. Nunca sabemos onde estamos quando a nossa vida termina, nem quando, quase voluntariamente, a colocamos em pausa.
Rogo-te, não sejas estupido nem ignorante, porque se o fores podes acabar com uma corda à volta do pescoço, com os pés a baloiçar ritmicamente a alguns centímetros do chão, enquanto à tua volta cheira a oliveiras e azeitonas acabadas de apanhar.

23 abril 2012

Depois de tudo o que foi dito

Tenho saudades de te encontrar de novo no caminho.
Logo eu, imagina, que amava o mundo inteiro.
Como isto aconteceu não estou certa. Sabes que a memória de como os sentimentos se vão plantando dentro de nós desaparece. Está lá, como uma presença sem rosto, sem nome.
É dificil passar pelos dias sem ti, sem saber de ti. Sem saber se aquilo que se plantou em mim, se plantou, nalgum momento, em ti também.
Disse-te que acreditava em coisas quase perfeitas. Continuo a acreditar. Cheguei a julgar que tu eras uma dessas coisas.
Chocarmos com pessoas que nos terminam as frases, que falam como nós, que tenham tanto de nós, sem no entanto sermos nós ou sem nunca nos terem conhecido é raro, raríssimo.
Agora que te escrevo e sinto saudades de te encontrar de novo no caminho, compreendo grossos troncos de árvores dentro que não compreendia antes. Vejo quão fortes eles são, como têm o poder de sofucar. Olho com mais atenção e percebo ainda que as coisas em que não voltei a encontrar-te são aquelas com as quais, nem com os troncos cá dentro sou capaz de lidar.
No entanto foram esses mesmos encontros iniciais, em que o caminho parecia tão certo, que me provocam estas saudades de encontrar novamente o teu olhar à minha espera, a tua voz a terminar o que eu dizia, o teu corpo agarrado ao meu.
Por as coisas seguirem o seu curso, por teres mudado, por ter deixado de encontrar o teu rosto, pelas palavras mais distantes e menos frequentes, estar sem ti já quase não me chega a molhar os olhos. Dá um aperto mais pequeno no peito, que dói como uma pedra pequena no sapato que incomoda mas não provoca danos suficientes para que paremos de imediato para a tirar.
Digo-te, eu não queria que isto fosse assim.
Imaginei outro rumo, outras palavras, quis dar-te acima de tudo outra entoação.
Quando agora falo de ti, por esta ou outra razão, já não me dizem que os meus olhos brilham, já não tapo a cara com a timidez própria das coisas que com custo mas felicidade, admitimos gostar genuinamente.
Quando agora me falas já não se abre um grande sorriso na minha cara, só um pequeno, com pena, com impotência. A impotência das coisas que por muito que queiramos sabemos não ser capazes de lutar por elas, por falta de meios, de abertura. Da abertura das coisas que querem que alguém batalhe por elas.
Eu não queria que isto fosse assim. De dentro para fora, de mim para ti, e apesar de tudo o que foi dito, tenho saudades de te encontrar de novo no caminho.

15 abril 2012

A nossa morte, de V. Ferreira

"O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo.
Mesmo que sejas uma personagem histórica, tudo entra de novo na rotina como se nem tivesses existido. O que mais podem fazer-te é tomar nota do acontecimento e recomeçar.
Quando morre um teu amigo ou conhecido, a vida continua natural como se quem existisse para morrer fosses só tu. Porque tudo converge para ti, em quem tudo existe, e assim te inquieta a certeza de que o universo morrerá contigo. Mas não morre.
Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não.
E isso é que é incompreensível - morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma. Tudo isto tem significado para o teu presente. Mas recua duzentos anos e verás que nada disto tem já significado."

Puxado a ferros

Mas que raio de coisa é essa que te incomoda? Que te apoquenta? Que te não deixa estar quieto sentado à mesa?
Mas que coisa é essa que tens presa na garganta, que se te enrola no estômago e não te deixa comer?
Poque não a mandas embora, porque não a enrolas num saco de plástico e a despejas no contentor do lixo?
Não julgues que a vida é sempre assim, até as crianças sabem que a realidade é mutável. Até um cão sabe que a fome que sente agora será tarde ou cedo satisfeita, nem que para isso seja necessária a morte.
Qual é o problema da morte? Porque te encolhes e fazes esgares de repugnância quando sabes que esse é o teu inevitável destino?
É a morte que te não deixa descansar. É ela que se aninha no teu peito à noite quando te deitas e o sono não chega. Quando te levantas na madrugada, bebes água e fumas um cigarro, regressas à cama e ela continua lá, a fazer de conta que é a fronha da tua almofada.
É a morte, ou a ideia da morte, ou a inevitabilidade da morte. A tua ou a dos outros? Se a dos outros, que outros? Que outros podem merecer o teu desassossego, a tua noite em branco, as tuas olheiras negras e profundas, a tua falta de paciência, a tua irritabilidade, a tua infelicidade?
Porque não páras quieto e dás um estalo a ti próprio? Magoavas-te menos, garanto.
Aquilo que os outros são não é uma promessa. Anda, não deixes que seja essa mentira a moldar os teus dias, não te deixes chegar a velho só para descobrires que nada disso importa.
Anda, esbofeteia-te se for preciso, aceita de uma vez por todas que há pessoas que podes amar profundamente, das quais nunca te vais esquecer, que vão estar sempre enroladas no teu coração, mas que não vão permanecer na tua vida. É a ordem natural das coisas, é assim que o mundo continua a girar e a fazer sentido.
Existem palavras que esgotam, que de tanto as dizermos ou pensarmos, nos deixam exaustos, doentes dentro.
No inicio há uma palavra que vai ser boa, que vai ser quente como uma tarde de Verão, que te vai arrepiar e parecer lamber o corpo. Depois ela vai repetir-se, repetir-se, repetir-se até que te doa.
Aceita-a. É uma palavra com suspiros lá dentro, e só a vais conhecer quando dela sairem lágrimas, quando dela saírem bafios cinzentos de mais noites de insónia. Depois de conheceres essa palavra, de a dizeres, de a repetires, de a sofreres, repara, como a morte é secundária, como a morte é um acaso, como a morte, essa mesma que te deixa em rebuliço, é uma tremenda e ridicula estupidez.
Amo-te. Não esqueças, repete-a até que doa.

03 abril 2012

Se eu chegar a velha

  Quando eu chegar a velha, se lá chegar, quantas pessoas terei conhecido? Com quantas terei falado? A quantas terei contado a minha vida? Quantas terei amado, quantas me terão amado a mim? Quantas casas resistirão? E as estradas, permanecerão as mesmas?
  Se eu chegar a velha terei sobrevivido, tudo aquilo que um dia me fez rogar pragas à vida terá passado, estará no cano debaixo do ralo da banheira. Terei as mãos cheias de gente, de sítios, de sons, de cheiros. Para alguns vou sorrir, outros nem o nome vou lembrar, só que um dia fizeram parte de mim e que viveram dentro do meu peito, encostados áquilo que tinha de precioso.
  Se eu chegar a velha fiquem-me com tudo. Levem-me as recordações, todas, as boas e as más. Abram-me o corpo de par em par, como quem abre uma janela, e vertam-nas para um alguidar verde musgo, daqueles gastos, já cheios de cortes e espigões de plásticos. Pendurem-nas no estendal e deixem-nas livres para voarem numa noite de maior vendaval. Não as retirem da corda por coisa nenhuma, nem por um incendio, nem por uma cheia, um tornado ou um assalto. E se for um assalto deixem que as levem, se algum valor virem nelas, que as vendam numa loja de penhores, ao desbarato, por tuta e meia.
  Queimem a minha roupa, não guardem casacos quentes que podem dar jeito no Inverno, não se esqueçam das minhas calças numa gaveta só porque podem servir para andar por aí. Não usem os meus sapatos, não deixem que eles que já percorreram os meus trilhos, percorram os vossos, deem-lhes  o gosto de terem um fim comigo, de serem finitos e de terem as suas próprias memórias, que elas se enlacem nas minhas, que morram comigo. Queimem-nas, se eu chegar a velha.
  As minhas casas, se as tiver, vendam-nas. Não morem nelas, não me recordem em cada divisão. Não usem os meus talheres. Se eu chegar a velha e morrer, com o tempo, vão recordar-se menos e menos de mim, mas de vez em quando, quando o vento vos trouxer o meu cheiro, quando pegarem nalguma coisa que tenha sido minha, vão lembrar-se, e, se me tiverem amado tanto quanto vos amei, isso vai entristecer-vos. E não há coisa pior que sermos o motivo de dor para alguém que amamos profundamente.
  Se perguntarem por mim digam que fui á pesca, que fui á mercearia, não digam que fui à missa senão percebem logo que lhes querem enfiar o barrete. Usem coisas simples, como flores, fontes e relva. Se mantiverem as coisas simples ninguém vai desconfiar, e isso vai poupar-vos palmadinhas nas costas, abraços pouco sentidos e sorrisos desviados com um encolher de ombros e um “é a vida, temos que ser fortes”.
  Se eu chegar a velha não guardem de mim nada. Se eu chegar a velha, rogo-vos, esqueçam-me.