18 maio 2012

A garrafa de Beirão

Estava tudo bem antes da noite chegar.
O frio gelava, mas o sol brilhava alto. Os cigarros eram muitos, mas não demasiados. Os olhos fechavam-se com calma por saberem que dentro nada os ia assustar, e que fora nada existia que pudesse subitamente desaparecer. Os olhos fechavam-se com calma, é preciso reter esta ideia.
Existiam certezas, convicções. Sabia-se como agir em qualquer circunstancia. Dentro da cabeça, no cérebro altamente racional, podia escolher-se, como na ementa de um restaurante, qual a atitude a tomar dependendo do que estava á frente. Era fácil. Simples. Metódico. Tinha o sabor das coisas certas e controladas.
Depois veio a noite. Vieram os copos. A garrafa de Beirão de que ninguém gostava e que, por isso, escorria ainda melhor. Não existia urgência em bebê-la, era exclusiva, bebia-se com calma. Com algumas certezas ainda. Vieram os patés caseiros, o esparguete à bolonhesa para o jantar, a aparelhagem que ninguém entendia e ouviu-se rádio

[os últimos êxitos da década de 70, 80 e 90]

Houve uma conversa na varanda, falava-se de politica, creio. Outra na cozinha, sobre as infinitas e intemporais questões do bom uso da lingua portuguesa.
Foi mais ou menos por esta altura que tudo se precipitou e as convicções fugiram entre os dedos à mesma velocidade com que mais beirões escorriam garganta a baixo.
Depois veio a musica. Depois da musica vieram os corpos a dançar. Depois dos corpos a dançar vieram os olhos e com os olhos ficou tudo escancarado.
Lá ficaram espalhadas, como um qualquer farrapo, as certezas, convicções, a metocidade, o controlo.
O frio foi embora. Os cigarros que já eram muitos passaram a ser muito mais que demasiados. Os olhos desaprenderam a calma, ganharam medos, receios. O que está dentro é pavoroso, o que está fora é a constante iminência do desastre.
Depois da noite chegar, já pouco importa que ninguém goste de Beirão, pouco importa que a garrafa seja exclusiva. Há que terminá-la depressa, deixá-la escorrer para dentro como um raio, para que se recupere o controlo, as certezas, a segurança.
Antes de tudo há o caos. O resto é pudim flan. O resto são amendoins. O resto é merda.

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