26 agosto 2012

Trapalhadas, palermolas e decisões tomadas em dias de tempestade

O mundo divide-se entre dois tipos de pessoas: as que eu amei e as que eu gostava de ter amado. Estes dois tipos de pessoas, por sua vez, cada um bem dentro de cada categoria, subdivide-se noutros que catalogo entre, dentro das pessoas que amei, as que foi bom amar e as que não poderiam ter sido mais erradas (embora amá-las tenha sabido bem); e dentro das que eu gostava de ter amado, as que teriam sido boas, tão boas para mim, e as que, por portas e travessas, eu sei que teriam sido boas de amar, pelo amor debaixo das pálpebras ainda que em dias de cegueira tempestiva total e absoluta.

Resumindo, e eu que não gosto de resumir coisa nenhuma, fica sempre tanto por decifrar, esclarecer e enaltecer nas coisas resumidas e espremidas, existem dentro de cada laia as boas e as más pessoas, por falta de melhor forma de as reduzir a insignificâncias que podem não merecer, mas que a força das circunstancias assim o obrigam.

Aprende-se a amar cedo, no recreio da infantil ama-se aquilo que de desdenha, o miúdo que nos rouba os brinquedos, que nos espreita na casa de banho, que nos puxa os carrapitos ou nos chama nomes. Sabe-se hoje, à partida, que estava criada a receita perfeita para a desgraça, para se nos cravejarem subtis mas eternas as primeiras fissuras no peito.

Mais tarde, do alto de toda a sabedoria fútil de que nos ensinam os desenhos animados de meninas loiras quase-perfeitas, com corpos impossíveis mas perfeitos, que têm 10 anos mas já usam saltos altos e ainda por cima salvam o mundo de terroríficos ataques de monstros crivados de olhos, braços e gosma verde a escapar entre as narinas arreganhadas, amamos o rapaz mais burro mas bonito da sala. Ignoramos quem tenha sido John Nash e lutamos todas pelo mesmo desgraçado que, além de não merecer essa luta e cabelos arrancados, nunca fica com nenhuma, porque quando a luta termina já estamos a começar a descobrir que aquele palermolas de cabelo perfeitamente penteado só quer é jogar à bola e espreitar-nos debaixo da saia sem saber o que fazer com aquilo que lá encontra.

Quando o amor à seria aparece já nós estamos tão confusas com aquilo tudo que lhe trocamos as voltas, damos o dito por não dito, enrolamo-nos em cambalhotas efectuadas com pouca perícia e por isso mesmo lá nos vamos habitando de ossos partidos, nódoas negras e lesões mal curadas.

Parece impossível mas é mais ou menos por esta altura que notamos que existe uma arguta diferença entre amar aquilo que amamos e aquilo que nos faz bem. Decidimos sem sabermos o que isso realmente significa amar aquilo que amamos, só porque sim, só porque no meio de tanta trapalhada, cabelos penteados e desdém, julgamos que aquilo que nos faz bem é o que nos acelera o peito e nos provoca turbulência nos órgãos.

È agora, só agora, depois da decisão estar tomada, que as gavetas se enchem daqueles dois tipos de pessoas: as que amamos e as que gostávamos de ter amado. Quando compreendemos esta diferença já a carroça passou e levou os cavalos com a abóbora e os pós de perlimpimpim dentro, ficamos com a cómoda escancarada cheia de rostos que nos fitam e nós de mãos e pés atados, cheias de vontade, mortas da vontade de pegar naquilo tudo e os trocar de sitio. São só as pessoas que gostávamos de ter amado aquelas que devíamos ter amado, por todos os motivos e mais alguns, mas principalmente porque seriam essas aquelas que nos teriam amado na mesma medida e em cima disso tudo, como se fosse pouco, nos teriam feito bem, só bem. Simples.

Mas enfim, teremos sempre a Navegante da Lua que dentro dos seus fatos incríveis, das suas pernas de metro e meio, e do seu loiro ofuscante, vai fazer por nós aquilo que não soubemos fazer na altura certa: lutar com monstros crivados de olhos, braços e gosma verde a escapar entre as narinas arreganhadas, e claro, amar aquilo que efectivamente lhe faz bem. Só bem. Simples.

16 agosto 2012

Sr. Grilo ou A embriaguez do silêncio

Quando o silêncio não chega, ainda que absoluto, o que fazer aos pedaços quebrados que se vão empoleirando e preenchendo o chão em volta?

Há discórdia, estranheza, confusão e revolta contra o silêncio. O nada é uma ideia, só uma ideia de onde se parte para outras, mais grandiosas, respeitáveis, fáceis de aceitar. O vazio não se entende, existe desabitado daquilo que se conhece, que se sabe certo, ordinário e sóbrio.

Quem está bem dentro da solidão está embriagado de ruídos mortíferos, de granadas, de coisas pequenas que se tornam imensas, de coisas imensas que, gradualmente e de forma dolorosa, se tornam pequenas. Entontece a alma ver a solidão de dentro, entornam-se lá para dentro anos e anos de vida, relógios parados, paredes que gritam, pessoas que não falam por estarem mortas, bandejas de refeições que não sabem a coisa nenhuma, animais enraivecidos de dentes arreganhados.

Há dias em que tudo diz:

“A vida a ficar pequenina, não é Sr. Grilo?”

e aquilo de repente faz sentido. Vamos tomar a bica e em vez da conta

“A vida a ficar pequenina, não é Sr. Grilo?”

estamos no supermercado e a menina da caixa, em vez de pedir os cupões de desconto

“A vida a ficar pequenina, não é Sr. Grilo?”

arrumamos o carro e o arrumador, em vez de pedir uns trocos nos sussurra, bafiento de alcool, drogas, e falta de sexo

“A vida a ficar pequenina, não é Sr.Grilo?”

Chega-se a casa e o espaço parece gritantemente claustrofóbico, tudo nos falta e tudo nos sufoca, os sofás estão no canto errado da sala, a cómoda incomoda porque estamos sempre a bater com o dedo mindinho na esquina, apesar de a sabermos no mesmo sitio desde há anos, os talheres são em demasia para uma casa onde se come sempre sozinho. Descobrem-se palavras no meio dos atoalhados, encontram-se gestos na água fervente do chuveiro, escutam-se choros debaixo da tinta da parede, já gasta. Olha-se para a janela, julga-se ver um vulto que esbraceja furiosamente do outro lado, no prédio em frente. Não se acredita, precisará de ajuda? Esfregam-se os olhos com força, fechamo-los ligeiramente em tom de miopia. Lá está o vizinho de quem não se conhece o nome e que grita, suplicante

“A vida a ficar pequenina, não é Sr. Grilo?”

Na borda do passeio vai, saltitante e feliz, o Pinóquio, que ainda acredita, coitadinho, que a fada madrinha o vai transformar num menino… de verdade.

10 agosto 2012

E nada o vento levou…

Havia um televisor antigo na sala. Calado, num silêncio suplicante. Um televisor em sofrimento. Sentia-se que tinha coisas para dizer, mas sem poder, coitado, para sempre silenciado por outros mais modernos, mais bonitos, com imagens mais nítidas, com acesso a alta definição. Via-se que estava sozinho entre vasos de plantas meias murchas, também elas a sofrer, a requerer amor em sítios onde já não existia amor para dar.

Dentro do televisor, onde só existia negro, sem imagem, movimento ou som, vi o teu rosto impenetrável, abandonado à perda, sem compreender os desígnios daquilo que a vida nos vais colocando no prato para comer e calar, porque lá está, “é a vida”, “faz parte”,´”há que ser forte e seguir em frente”…

E quando não se quer seguir em frente? Quando o mundo desaba e nós sem sabermos como nem onde. O teu rosto parado no ecrã desligado, despovoado da ternura evidente e gritante dos que por ordem absolutamente normal e esperada nos deviam dar a mão, ensinar-nos como apertar os cordões ás sapatilhas, dar um aperto de mão “à homem”, descodificar aquilo que o tempo nos vai entregando para decifrar…

E Rhett Butler grita aos meus ouvidos:

“You shloud be kissed, and often. And by someone who knows how…”

e eu devia beijar-te agora. Devia pegar na tua mão e levar-te para longe. Encontrar-nos junto à linha férrea e sentar-me ao teu lado no primeiro comboio que passasse, na carruagem que parasse exactamente à nossa frente, enquanto a tua mão tremia junto à minha e eu a apertava com força e te dizia sem precisar de usar palavras, que estava tudo bem, que te levava para onde o ruído fosse suportável, para onde o teu rosto não estivesse infinitamente parado, sofrido, tétrico e nebuloso pelos toques que te foram roubados sem que tivesses possibilidade de os reter dentro de ti, de lhes dares o beijo que mereciam, o beijo que durasse o resto das horas e dos dias que tentas encher com a palha que julgas preencher o vazio que a ausência desses olhares deixaram para sempre cravadas no teu corpo.

E sussurra a Scarlett junto ao teu ouvido: “I came 'cause I was so miserable at the thought of you in trouble”

e sou eu quem o sussurra para dentro de ti. E tudo o vento levou é uma mentira. Nada, meu querido, nada o vento levou. Fica tudo intocável, impenetrável, inviolável, no sitio onde não sabes, mas podes sempre regressar, porque dentro do peito (onde se escondem as emoções), reside e permanece aquilo que nos move, aquilo que no final de contas e no final do dia realmente importa, o amor.

E o amor não existe no espaço nem no tempo, está parado, como o televisor antigo, com as memórias. Essas são tuas e ninguém as pode roubar. Leva-as, são tuas, até ao fim das coisas que nunca se hão-de extinguir.