02 setembro 2012

É a isto que se chama amor. Fácil.

Na morte não há heróis. Venha quem vier, não são heróis os que partem nem os que ficam, os que ficam muito menos.

Sofre-se de forma dolorosamente solitária a ausência, a repentina falta da voz, do cheiro, do toque. Ficam sempre palavras por dizer, penduradas nos olhos cabisbaixos semi-envergonhados de quem não teve tempo para as agarrar no ar e as soprar para quem o deixou.

Há uma injustiça tremenda na morte. Na morte em si, no desaparecimento total e sem sentido de um corpo que já nos abraçou, de um rosto que já se virou por nos ouvir chamar, de um olhar que já parou em cima do nosso para prestar atenção não só ao que dizíamos com a boca mas principalmente àquilo que pretendíamos que ficasse compreendido sem letras.

Não há heróis, já disse. Ninguém enfrenta estoicamente a perda de quem, por mais anos que nos passem por cima, nos vai fazer falta. Ainda que se não queira existem as lágrimas, e depois, por cima disso, existe o buraco profundo que permanece por tempo indeterminado e provavelmente infinito por dentro, num sitio qualquer ermo sem nome, não é bem no peito, não é bem na cabeça, é em todos estes lados e estende-se para lá do nosso próprio corpo, toca aquilo que tocamos, entranha-se na comida que comemos que perde sabor, contamina a água com que tomamos banho e não descola, não desaparece. Perdura para lá do aceitável e suportável.

Não é a dor que passa com o nascer sucessivo do Sol, dia após dia, é a união física que ao desaparecer, cria em nós a ilusão de que fica mais ligeiro o sofrimento, mas não fica. É impossível, é uma loucura, uma insensatez a que nos permitimos porque senão a vida em si, a que continua deste lado, tornava-se de tal modo insustentável que de repente o buraco dentro e fora de nós já éramos nós e desaparecíamos inclusos nele, parte dele, escuridão como ele.

Torna-se penoso sobreviver a perdas consecutivas. A vida converte-se num sitio solitário, cada vez mais só. As pessoas que nos amaram e a quem amámos vão desabitando de nós as suas vidas e este é um caminho tortuoso e triste. Tão desoladoramente triste quando as baixas se vão amontoando, amontoando, tombando à nossa volta como peças de um dominó cansado de inventar malabarismos para sobreviver a fazer os restantes dias valer a pena.

Não existem heróis na morte. A morte deve ser chorada, deve revoltar-nos, deve fazer de nós meninos a bater com o pé e a perguntar vezes e vezes sem conta “porquê?!”, deve ser sofrida para dentro e para fora, e mesmo que o mundo não pare para esperar que o sofrimento amaine, ele que se dane, que gire, que continue a sua azáfama indiferente à nossa dor, é nossa e deve ser louvada, porque só quem ama desmesuradamente é capaz de aceitar e se deixar arrastar para o abismo porque sabe o preço altíssimo da saudade.

Quando ela chegar, a morte, compreende que há quem compreenda também, que há quem fique no escuro à espreita, com cuidado, afastado enquanto nos quiserem afastados, mas que entendem e, enquanto for permitido, não querem desabitar de tua, a vida deles.

Somos os comandantes uns dos outros, é nossa obrigação certificarmo-nos de que na hora certa, não devem existir heróis, e para isso estamos lá, de pé fincado nas entranhas da vida uns dos outros. E é a isto que se chama amor. Fácil.

1 comentário:

  1. Oi Gil,

    o seu texto é lindo! E triste também!

    A dor da perda nos deixa estagnados em nossas próprias estacas. Inertes, perdidos em nós mesmos em busca de um centésimo de segundo que possa nos trazer o outro de volta, seja para dizer o que não dissemos, seja para um abraço, um sorriso...
    Neste momento, a única coisa que pode nos fortalecer é saber que o amor que vivemos foi intenso e verdadeiro, nossa única força neste momento.

    Lindo Texto, uma reflexão para todos nós!

    Abraços

    Leila

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