24 julho 2012

Conto de falhas

Não conseguia respirar. Não era possível respirar. Em volta tanto e tão pouco ar. As mãos pousadas no colo e as veias salientes pulavam, arquejavam furiosamente, quando regressavam à mão eram um chicote de encontro aos ossos, à carne.

E depois já não estava ali, tocaram no ombro e o olhar fugiu para para o rosto do amigo em pânico a contar que aprendeu a nadar quando o pai o atirou para dentro de água e lhe disse:

- Agora safa-te!

e ele com medo, a esbracejar, a querer que alguém lhe pusesse a mão e o tirasse dali. A lutar contra a corrente, a dançar com o rosto fora e dentro num sufoco desmedido. A imagem do pai de braços cruzados firmemente sobre o peito a observá-lo de longe, rígido, impenetrável. E ele a safar-se, eventualmente.

Não era possível respirar. A garganta ardia, as palavras não saiam nem arrancadas a ferros, as mãos procuravam impacientemente encontrar um buraco no pescoço por onde o ar pudesse entrar, mas era tudo pele, tudo coberto, matéria inviolável, impenetrável. Os olhos não viam já, o tacto falhava em concordância com o batimento cardíaco que desacelerava…desacelerava… a língua seca buscava exílio no exterior onde não existia sequer uma brisa.

Tudo em volta estava parado, finalmente parado. Tudo em volta estava vazio. O dentro se fez fora, o negro caminhou dançante sobre a pele e criou uma neblina pacifica em torno. Os pés pararam de tremer, o olhar parou para admirar a maravilhosa cor do intimo arrebanhado, hasteado em praça publica, a escorrer o sangue que fedia a história, passado, fantasmas e monstros debaixo da cama. O sublime que era, por fim, ver as próprias entranhas serem arrancadas de si e pousadas no tampo da mesa para que as pudesse comer, trincar, arranhar. Eventualmente até, para as poder matar e só aí ser capaz de compreender a ironia que é estar e ser, finalmente livre. Dos outros, mas principalmente de si mesmo.

08 julho 2012

No escuro não se vê com os olhos

É urgente que se pare para pensar, racionalizar as emoções. Não nos deixarmos levar pelo êxtase, pelo entusiasmo das coisas efémeras.

Não é que não sejamos boas pessoas, que somos. Não é que não sejamos amáveis no sentido em que somos passíveis de ser amados, que somos. Não é que não tenhamos virtudes, que temos. Mas em boa verdade, nem todos nos servimos dentro uns dos outros.

Aquilo que queremos da vida é completamente diferente daquilo que a vida quer de nós. Repito, é preciso tornar coerentes, claras e concisas as emoções. Não nos apaixonarmos pelas pessoas pelos motivos errados. Não lhes construir personalidade onde ela pode bem nem sequer existir. Não querermos por força transformar aqueles que nos invadem o peito em peças de lego, que somos capazes de construir ao nosso gosto para que os possamos amar.

É obrigatório que se coloquem os pontos devidos nos i’s, perseguir-lhes o olhar para saber onde se vai pousar. Saber se no mesmo instante, perante uma mesma imagem, a vida nos explode nas vísceras com a mesma intensidade.

Ao longo do caminho há que apertar a mão com força, saber-nos ali, no mesmo empedrado geométrico da estrada, e não numa bifurcação de terra batida. Ninguém devia caminhar sozinho julgando estar acompanhado.

No escuro não se vê com os olhos, mas com o tacto, e com o sangue fervente nas veias.

Tudo se suporta em silêncio

Estou a ficar velha, cansada, gorda e cada vez mais sozinha. Tenho quase quarenta e sete anos, um filho, um ex-marido e uma cadela.

Vivo numa casa que se pode dizer bonita, tem um pequeno logradouro. Nesse logradouro tenho roseiras, algumas ervas aromáticas e uma camélia. Rego-as todas as manhãs e tardes, de Verão, e de manhã, de Inverno.

Tenho um emprego que me permite jantar fora duas ou três vezes por semana, viajar para outros países duas vezes por ano, comprar roupa pelo menos uma vez por mês, e cometer loucuras relacionadas com tecnologia de, pelo menos, três em três meses. Ganho bem, trabalho muito, aprecio pouco…cada vez menos.

Numa dessas duas ou três vezes por semana em que janto fora, vou sempre ao mesmo restaurante com um grupo pequeno mas coeso e já de longa data de amigas. Nenhuma delas trabalha comigo, são pessoas de outras áreas e isso orgulha-me. Com as do meu emprego dou-me pouco, tomamos café de manhã, à hora de almoço e ao lanche no escritório, e de resto tenho os seus contactos no telemóvel por pura cortesia.

O meu filho vive longe, com a namorada. É boa rapariga, gosto dela, mas não me meto entre eles. Sempre me ensinaram que os sobressaltos e as emoções se devem sentir em silêncio, e é isso que faço. De tempos a tempos eles vêem cá passar uns dias, fazem a vida deles e juntamo-nos ao jantar, já aconteceu irmos ao cinema, mas não falamos muito, não temos já nada para dizer. Olhamo-nos, eu e o meu filho, fatigados, como se soubéssemos que temos coisas para perdoar um ao outro. E perdoamo-nos. Em silêncio.

A culpa disto é da minha mãe, que Deus a tenha em descanso absoluto. Eu amava-a tanto, e ela sempre a fugir-me. Eu queria tanto abraçá-la, e ela sempre a afastar-me. A dizer de forma insistente e séria:

- Tudo se suporta em silêncio. Quanto mais rápido aprenderes isto, mais depressa arranjas marido e endireitas a tua vida.

E assim foi. Aos 24 apaixonei-me, ou julguei apaixonar-me, e aos 26 já estava de anel no dedo, a partilhar casa com um homem que mal conhecia, para todos os efeitos. Fomos felizes com alguma remissa, quando engravidei fiquei contente, julguei que seria nessa altura que a solidão se ia despegar do meu corpo, e que nunca mais estaria à deriva dentro da minha própria vida. Não foi assim. Fiquei mais triste. O meu marido tinha um coração enorme, tão grande que não cabia lá só uma pessoa, por isso as chamadas a meio da noite repetiam-se e, como me ensinaram a sofrer para dentro e em silêncio, aos poucos ele deixou sequer de fazer segredo. Ambos sabíamos, ninguém dizia nada, e os dias iam-se amontoando em cima uns dos outros.

Um dia ele disse-me que ia embora. E foi. Não fiquei especialmente abatida, e aquilo não me surpreendeu. O meu filho ficou comigo, ia passar os fins de semana de quinze em quinze dias com o pai, na escola tudo corria bem.

Estou cada vez mais velha, gorda e cansada. E a culpa disto tudo é da minha mãe, e do silêncio, que em vez de me endireitar a vida, escaqueirou-a de forma irremediável e diga-se, ridiculamente patética. 

04 julho 2012

Cenário

“Cenário… Dentro de tua casa, no teu quarto… Eu e tu…”

Começou assim.

È claro que antes do quarto, antes da casa, já existíamos dentro um do outro. Era um mistério para todos, mas não para nós. Sabíamos da inevitabilidade do toque antes ainda de ele existir, tínhamos a certeza de estarmos a fazer sexo um com o outro muito antes de termos os olhos em cima um do outro. Mas isto são outras histórias. Do que hoje é imperativo falar, por pena de um qualquer cataclismo ou catástrofe natural, é do sexo, do toque, do refúgio, do instinto.

Tu não conhecias o sabor da minha pele, tinhas uma vaga ideia, é certo. Já o tinhas imaginado tantas vezes quantas as que tínhamos feito sexo na tua cabeça, e na minha, mas a certeza do sabor de uma pele é coisa que só acontece depois de acontecer.

Já no meu quarto, mas ainda longe de chegar à cama, já as tuas mãos, das quais eu também só tinha uma ideia do peso sobre o meu corpo, agarravam com urgência, mas força, a minha cintura. Eu tinha o meu corpo de encontro ao teu, o espaço que nos separava era longo, apesar de quase inexistente, mas a necessidade continuada de te sentir em mim obrigava-me a puxar-te mais para perto, o mais perto possível, como se o único lugar certo fosse dentro do teu corpo, e tu dentro do meu.

Os teus braços envolveram as minhas pernas que se entrelaçaram à volta da tua cintura e sem nenhum de nós compreender exactamente como, já todo o teu corpo pesava sobre o meu, semi-nu, na cama. A roupa estava em excesso, tudo ardia e queimava, junto ao teu ouvido, sabia que a minha respiração era uma suplica quase. A violência de se querer sentir como se sente quando se quer, e quando o querer já é um vírus, um rastilho à espera de ser ateado.

Quando entraste finalmente dentro de mim tudo o resto ficou suspenso. Á nossa volta existiam todas as coisas de que se foge porque as desejamos em demasia, porque somos animais. Raiva, vingança, amor, coisas das quais se sentem saudades e às quais não sabemos dar nomes ainda, palavras que estavam por dizer, outras que é preciso que se repitam, a incredulidade de que aquilo existia e era real, explosões em sítios adormecidos, as minhas mãos a agarrem-te com violência, os teus olhos fechados com os meus lá dentro. Todas as guerras, tiroteios, gritos, urgências, condensadas no exacto momento em que o tempo já não tem tempo, já deixou de existir, já desistiu de procurar explicações para aquilo que não pode ser calculado.

Enquanto recuperámos a respiração tínhamos o rosto cheio de nós, já não sabíamos os nossos nomes, inventámo-nos outros, esquecemo-nos de quem éramos. Dentro da cabeça ficámos com turbilhões de perguntas que não tinham palavras para serem articuladas. Nada disto foi pensado ou premeditado, enquanto nos fomos embrulhando um no outro, nada disto eram pensamento ordenados ou lógicos, eram sombras difusas de desejos que queimavam aquilo que tínhamos dentro.

Já não sei se foi exactamente assim, de certo há dias em que nem sei se foi, nem levemente, assim. Olho para as imagens que quis manter paradas, como fotografias, do teu rosto pousado no meu, e já não sei bem porque ordem o sexo aconteceu. Sei que foi intenso, total, urgente e que durou a vida inteira de horas, que se prolongaram de forma supostamente infinita nos nossos corpos. Sei que estivemos lá, os dois, e que naquele momento, não existia mesmo mais nenhum lugar certo para se estar e ser.

   “Cenário… Dentro de tua casa, no teu quarto… Eu e tu…”

Começou assim.

02 julho 2012

Traços e cicatrizes

Eu vou amar-te pelas rugas no teu rosto. Pelos traços e cicatrizes que cruzarem o teu corpo.

Vou amar-te pelo teu sorriso, pela tua fome no olhar. Pelos movimentos dos teus braços enquanto falas. Pela tonalidade da tua voz, pela forma como a colocas, pelas pausas que fazes, pelo silêncio que pesa entre algumas palavras.

Por muito bem que te sirva, ou por muito que o queiras, não serei um filho da puta. Não te vou trair, nem magoar. Não te vou ofender. Se deixar de te amar vou saber dizê-lo com cuidado, para não te rasgar os sentimentos. Vou respeitar-te, sempre. Se alguma vez discutirmos e eu levantar a voz, se te fizer mal de algum modo, peço-te que mo digas, para que eu possa pedir-te imediatamente perdão, porque certamente não o terei feito deliberadamente.

Quando fizermos amor vou ser inteiramente teu, e tomar-te-ei como inteiramente minha. Não vou pedir nem dar menos que o total e absoluto. Amar-mo-nos só nestas condições.

Se não for assim não te quero na minha vida. Até aparecer quem valha a pena há que perder muito tempo com quem não presta, e para isso tenho eu jeito. Faço-o como poucos, e bato recordes na estupidez, fugacidade e futilidade das relações. Não te deixes enganar pelo amor que tenho por ti, é real, mas não incondicional. Tão certo como ser completo, é o facto de eu ser capaz de saltar para fora do teu navio e correr o oceano a nado para outros veleiros, coisas mais pequenas, mas que me dão aquilo que eu quero, mais que não seja por escassas horas.

Eu vou amar-te pelas rugas no teu rosto. Pelos traços e cicatrizes que cruzarem o teu corpo. Quero ser uma dessas rugas, uma dessas cicatrizes. Quero-te a ti. Tu. Mulher dos olhos bonitos e tristes. Quero o teu cheiro na minha roupa. Quero o teu suor na minha pele. Quero que os nossos abraços tenham a forma dos nossos corpos.

Não me obrigues a aperfeiçoar uma técnica em que já sou perfeito. Não faças com que eu tenha, mais uma vez, que nadar em mar alto até encontrar uma jangada frágil que se quebre com o meu peso e que por isso tenha que abandonar imediatamente.

Vou amar-te pelo teu sorriso, pela tua fome no olhar. Pelos movimentos dos teus braços enquanto falas. Pela tonalidade da tua voz, pela forma como a colocas, pelas pausas que fazes, pelo silêncio que pesa entre algumas palavras.

As tuas, mas principalmente as minhas, que encho de ti.

01 julho 2012

O sitio onde se escondem as emoções

A certa altura envelhece-se sem ressentimento.

Aprendi isto com a Dona Teresa. A Dona Teresa era uma senhora de idade avançada, sempre teve uma idade avançada, que vivia em frente à casa do meu pai.

Nunca soube quantos anos tinha, sempre foi velha, velhinha. Tinha o olhar de quem vive com carne, pele, coração, ossos, memórias, infernos, lágrimas, dentro da vida. Que carrega tudo isto e muito mais de forma estóica. Como quem sabe de cor os sintomas e consequências de uma doença prolongada e fatal.

Nunca lhe ouvi a voz, nem ela a minha. Mas nos olhos dela aprendi isto: que com o passar do tempo, com as rugas, as quedas, o medo acumulado, a velhice vem sem mágoa, e as pessoas que vão passando por nós vão deixando cada vez mais delas, sem no entanto levarem tanto de nós.

Dona Teresa. Dona Teresa. Quem me dera a mim um dia envelhecer tanto e tão bem como ela. Quem me dera saber hoje e agora, o que é realmente isso de se envelhecer sem ressentimento, sem arrependimento, sem balbúrdia e turbulência no sitio onde se escondem as emoções.

Dona Teresa. Os seus olhos eram um ecrã de um filme. Do filme da vida dela. Dona Teresa, que eu já não sei onde está, que morreu muito provavelmente, que tem dias em que me faz falta encontrar os olhos dela atrás da janela para reaprender o Sol, as horas e o perdão.