29 janeiro 2013

Vendaval

Quando a manhã nos traz vendavais por trás da janela fica-se assim, muito quieto, a ver as árvores aflitas numa dança preocupada. Não se chega nunca a compreender se o que pretendem é desprender-se da terra que as aprisiona ou se é o desejo de nela permanecer, serenas, seguras, possantes.

Fica-se assim, meio confuso, meio pasmado. Meio triste, meio encantado. Urgem pavores dentro do corpo, vontades antigas de partir, de descobrir um nome de entre tantos nomes que à força de os repetirmos perdem sentido.

Sabe-se pouco daquilo que a pele significa, se o toque é quente ou gélido, macio ou áspero, suave ou rude, se alguma destas características querem dizer alguma coisa e se essa coisa tem alguma importância.

E enquanto se debate o vendaval lá fora permanecem questões que prometem horas de pandemónio emocional.

As pessoas onde estão? Para onde se viram os seus olhares? Que mãos seguram? Que emoções ainda as incomodam? De que é feito o amor que têm umas pelas outras?

Ao vendaval, tarde ou cedo se junta a tempestade. Chuva grossa que quando cai no alcatrão faz muito mais ruído que uma porta a bater. Reminiscências de pessoas que também elas, ao tombar, fizeram muito mais barulho que um prédio a ruir. E doem essas almas, doem mais e mais de todas as vezes que o rugido do vento não nos deixa descansar. Que nos obriga, apesar de só querermos um pouco de paz, a repor memórias, a racionalizar emoções, a calcular futuros, a deixar de querer.

Deixa-se a tempestade com uma mão pousada no rosto e outra no peito, com pesar por não existir um abraço que pudesse durar o resto das horas que, de tempos a tempos, nos queríamos permitir a dedicar aos que o vendaval levou.

24 janeiro 2013

Nada a ver com amor

E foi então, só então, que a realidade do nosso fim me bateu. E bateu-me, abalroou-me, deixou-me nervosa, o estático momento em que me sinto perdida, mas na verdade sei que acabei de me encontrar.

Chorei a nossa morte como se de uma pessoa se tratasse, revoltei-me com aquilo tudo, com a cama desfeita, com o que ficou para trás, com o que foi dito, com o que foi sonhado, pensado, com os nomes que quisemos escolher, com a voz e com as curtas metragens que me permiti, por opção, a ver repetidamente em frente aos meus olhos.

Não estou certa do motivo pelo qual fiquei assim, tão triste. Acho que o fim, seja ele qual for, e mesmo sabendo da sua inevitabilidade, me dói sempre mais fundo. Não tanto o fim daquilo, mas o ver-me forçada a admitir que aquilo que eu tinha projetado, que aquilo em que eu queria transformar-nos não ia ser possível. E o tempo, a emoção, a intensidade do que foi sentido. Convenço-me e estou agora, depois de nos ter chorado, quase certa de que, por incrível que sejas, foste um produto inventado por mim.

Ver-nos frustrados, assim, depois de tudo aquilo que foi dito e querido, porque o chegou a ser, parte-me o coração em mil pedaços. Que vai ser de nós agora? Eu aqui e tu aí, de volta à casa da partida, sabendo que o tempo nos vai passar por cima e que eventualmente nos vamos tornar em meras lembranças, meio difusas, do que podia ter sido.

É isso, reconheço-o finalmente, é o ver-nos reduzidos a esta insignificância que nenhum de nós merece, porque somos bons, porque temos o coração no sitio certo, porque nos sentimos, em tempos, a casa um do outro. é redutor, limitado, injusto.

Afinal de contas sabíamos que ia ser assim, posso até afirmar que o sabíamos desde o inicio, quando irresponsavelmente e de forma consciente decidimos enfiar-nos no avesso da vida um do outro.

Recuso-me a mentir e a abreviar ainda mais aquilo de que fomos feitos: vais fazer-me falta e embora eu saiba que isso me vai cansar, vais faltar-me, faltar-me, até que finalmente, entre destroços e minutos a martelar no relógio, deixes de o fazer.

17 janeiro 2013

Olhos-lua

Continuo a imaginar como seria a nossa vida, juntos.

Na nossa história morríamos velhinhos, sentados num banco-baloiço de madeira, mão-na-mão, olhar no horizonte e um campo de papoilas de perder de vista.

A nossa história teria começado à muitos anos atrás, atrás da memória que é sequer possível de recordar. A nossa história, meu amor, teria começado numa estrela, num céu imenso e infinito, como nós.

Ao sabermo-nos mortais, capazes de morrer, fugíamos para o sitio mais escondido, mais deserto e mais silencioso do mundo, reinventávamos a ideia do amor, e à imagem dele, construíamos a nossa casa, o nosso campo de papoilas.

Se eu pudesse inventar a nossa história, se sequer existisses, terias em vez da pupila, uma lua, sempre cintilante, cheia, transbordante. As tuas mãos seriam sempre quentes, fortes, dedos finos e compridos que ao toque provocassem turbilhões e tempestades dentro de mim.

Continuo a imaginar a nossa vida, juntos.

Se existisses eu sei que nesta infinita planície, mesmo ao longe, eu te reconheceria, ficava a olhar-te enquanto devagar te aproximavas de mim e sim, serias sempre tu ali, com o sol a rasgar raios atrás de ti, os teus pés tapados por papoilas, os teus olhos-lua a falarem comigo sem que a tua boca se movesse.

Mesmo quando disperso e divago acerca do que seria a nossa vida, se existisses, só me permito à imaginação até certo ponto, depois paro. Sei-te não real, não meu, não olhos-lua, nem toque quente. Quando te sinto próximo e me falas dou alguns passos atrás, para te olhar só mais um pouco, e viro costas, para te esquecer só mais um pouco.

Se fosses real, amor meu, nada disto o seria. Nem estas letras, nem os carros frenéticos, nem o ruído ensurdecedor do burburinho das multidões, nem este teclado onde te escrevo. Se fosses real, este mundo seria outro, um mais capaz, mais certo, melhor.

Esta história só seria possível se todo o amor do mundo fosse possível. Se fosse possível, enfim, que o amor fosse tudo o que é possível.

16 janeiro 2013

Anacleto Sousa Carvalho Gomes

Anacleto Sousa Carvalho Gomes, isto tem de acabar. Um dia, Anacleto, aviso-te já, isto vai ter de acabar.

Quando era nova, sim sr., tinha as hormonas em polvorosa, acreditava em histórias de princesas, lia romances de cordel, via as novelas na TV, mas agora, caramba, agora já depois de velha, depois de o corpo gasto, cansado, enrugado e ferido, já era tempo de me desamparares a entrada da vida, Anacleto.

Faz uma corrente de ar danada para aqui, com a porta e as janelas escancaradas desta maneira, e tu sempre do lado de fora, nem aqui, nem longe. Nem comigo, nem sem mim.

E entretanto o problema é também o de me ocupares a entrada e o pátio todo, quem passe aqui à frente nem consegue ver para dentro, de tão grande e inteiro que te puseste. Nem vêem para dentro, nem eu vejo para fora, e posto isto passam-se os anos e eu nem sozinha, nem acompanhada, sempre com a tua presença com sabor a ausência a esbarrancar-me os dias.

Ando meia perdida, imagina tu, Anacleto, que nem sei onde pus os óculos, nem o comando da TV, maneira que já nem as novelas posso ver ou os romances de cordel ler, e aviso-te, já não acredito em nenhum dos dois, por isso dá mas é corda ás botas e põe-te a andar da minha existência antes que eu cometa uma loucura e nos destrua aos dois de uma única assentada, que o remédio dos ratos é potente e competente, coisa que tu nunca foste, nem um nem outro.

Anacleto Sousa Carvalho Gomes, esta é a minha voz esganiçada que antes te divertia e que, por isso, ainda mais irritada eu ficava, e quanto mais irritada mais esganiçada me ponho. É a ultima vez que a vais ouvir. Já se passou muito tempo em cima de nós, está na hora de desistirmos disto tudo, deste amor infantil, desta coisa que não é carne nem peixe, e eu já sem idade para essas modernices dos vegetarianos. Estou cansada, Cletinho, cansada de te falar e de não me responderes, de te tentar tocar com a ponta dos dedos e de seres só uma miragem que me ocupa a entrada da vida toda.

Para quê, Cletinho, para que foste tu entrar pela porta principal, sabendo perfeitamente que existe uma entrada nas traseiras? Para que foste enfiar-te no único sitio por onde se agarra a vida inteira, sabendo tu que essa vida era a minha e que não querias, ou podias, ou conseguias, contê-la na tua.

Anacleto Sousa Carvalho Gomes, dóis-me os dias, choras-me as horas e morres-me a cada instante. Estou velha e já te disse, o tempo já me passou por cima, e tu vais ter que me desamparar a vida. Um dia… um dia… um dia…

03 janeiro 2013

Renato e as estrelas

O Renato contemplava as estrelas todas as noites, fazia-o desde que das estrelas há memória. Antes do Renato ser o Renato, antes de lhe darem um nome, antes de o tocarem como fazem os humanos uns com os outros, quando o Renato era ainda e só a promessa de um Renato, já olhava vagarosamente, apaixonado, as estrelas.

Sem a consciência que os humanos têm das estrelas, ele imaginava-as perto, ainda sem braços esforçava a imagem que tinha deles para as alcançar. Achava, claro sem nenhum conhecimento efetivo acerca do assunto, que elas seriam macias e esponjosas ao toque.

Quando rodopiou cansado numa órbita galopante cheia de cor e faíscas e num repente se fez humano, teve a primeira concepção do que seria estar perto de uma estrela, encontrou várias a dançar dentro de umas bolas semi lacrimejantes, que veio mais tarde a compreender serem os olhos da pessoa que aprendeu a chamar Mãe. No seu corpo minúsculo, mas já com os braços que ele sabia serem capazes finalmente de abraçar aqueles pontos luminosos e misteriosos, procurou incessantemente essas estrelas bailarinas que sempre se viravam na sua direção quando aquilo que mais tarde seria a sua voz, soava.

Naquela noite, passados muitos anos, quando sabia o comprimento exato dos seus dedos, das suas pernas e dos braços, quando já tinha conhecimento de que outras estrelas pairavam no seu horizonte, quando tinha já a mais certa certeza de que aquelas estrelas que via dançarem nos olhos da mãe eram todas as estrelas possíveis, uma aragem soprou forte por entre as cortinas, apressou-se a cerrar as janelas e num repente, num daqueles instantes mágicos que duram eternidades no nosso coração, ergueu os olhos e lá estavam outras, distantes, que cintilavam como quem sorri de um sorriso enorme. Esticou os braços o mais que pôde, empoleirou-se no beiral da janela e estirou-se, estirou-se, estirou-se até lhe doerem insuportavelmente os músculos, mas não foi capaz nem de próximo lhes chegar.

Entristeceu-se muito, o Renato. Adormeceu com lágrimas doces no rosto, que pendiam sob o verde infinito de que lhe eram feitos os olhos. Passou anos depois dessa noite a tentar alcançar, em vão, os milhares de astros que pairavam sobre a sua cabeça todas as noites, que brilhavam de forma impossível. Sonhou muitas vezes que pegava numa e a guardava num frasco em cima da mesa de cabeceira, quando acordava ela não estava lá.

Noutra noite, quando a impossibilidade da busca já o tinha quase ganho pelo cansaço, o pequeno Renato sentou-se num banco de um jardim, Demorou-se a olhar as flores, as infinitas combinações de cores que lhe pareciam ainda mais belas sob a luz ténue e tremeluzente da lua e dos candeeiros da estrada. Uma nova aragem soprou forte, pensou sem pensar que devia correr a fechar as portadas das janelas, e esse pensamento insólito recordou-o de uma outra certa noite, à muitos anos atrás, em que a brisa lhe trouxera as estrelas brilhantes fortes no firmamento, impossíveis de alcançar. Olhou em volta e dois pontos incrivelmente luzentes, de uma claridade irreal, estavam pousados nele, calmantes. Teve medo do encantamento exacerbado que sentiu por aquelas pupilas inquietantes que o observavam com a doçura própria das coisas que queremos zelar, a ternura que sobeja do amor pelas coisas belas e infinitas.

Passaram-se muitos anos sobre essa segunda noite que definiu tantas outras que a essa se seguiram. Com o tempo, a ternura e o pulsar constante e doce com que passou a sentir o coração bater dentro do peito, o Renato deixou de procurar alcançar com o toque as estrelas impossíveis do céu, nem precisou de sonhar nunca mais que roubava uma e a guardava num frasco na sua mesa de cabeceira, Acordava dia após dia, numa repetição meiga, com as pupilas inquietantes e irrealmente luzentes da noite do banco do jardim, pousadas nele (não só nele, mas dentro dele, daquilo que ele trazia por baixo da pele, dentro do peito).

Assim me foi contada esta história, e assim passo o testemunho, para quem o quiser, para quem buscar o inalcançável, o impossível, para que saiba, tal como o pequeno Renato acabou por descobrir, que aquilo com que vamos envelhecer e que vão definir a doçura incomparável dessa velhice, não são coisas, são as pessoas, é o brilho inquietante das pessoas, das nossas, das eternas, das estrelas que escorrem das pupilas e que brilham tanto, tanto mais que aquelas, as que brilham no abstrato e nunca nos hão-de secar as lágrimas, nunca nos hão-de ouvir sorrir.