16 janeiro 2013

Anacleto Sousa Carvalho Gomes

Anacleto Sousa Carvalho Gomes, isto tem de acabar. Um dia, Anacleto, aviso-te já, isto vai ter de acabar.

Quando era nova, sim sr., tinha as hormonas em polvorosa, acreditava em histórias de princesas, lia romances de cordel, via as novelas na TV, mas agora, caramba, agora já depois de velha, depois de o corpo gasto, cansado, enrugado e ferido, já era tempo de me desamparares a entrada da vida, Anacleto.

Faz uma corrente de ar danada para aqui, com a porta e as janelas escancaradas desta maneira, e tu sempre do lado de fora, nem aqui, nem longe. Nem comigo, nem sem mim.

E entretanto o problema é também o de me ocupares a entrada e o pátio todo, quem passe aqui à frente nem consegue ver para dentro, de tão grande e inteiro que te puseste. Nem vêem para dentro, nem eu vejo para fora, e posto isto passam-se os anos e eu nem sozinha, nem acompanhada, sempre com a tua presença com sabor a ausência a esbarrancar-me os dias.

Ando meia perdida, imagina tu, Anacleto, que nem sei onde pus os óculos, nem o comando da TV, maneira que já nem as novelas posso ver ou os romances de cordel ler, e aviso-te, já não acredito em nenhum dos dois, por isso dá mas é corda ás botas e põe-te a andar da minha existência antes que eu cometa uma loucura e nos destrua aos dois de uma única assentada, que o remédio dos ratos é potente e competente, coisa que tu nunca foste, nem um nem outro.

Anacleto Sousa Carvalho Gomes, esta é a minha voz esganiçada que antes te divertia e que, por isso, ainda mais irritada eu ficava, e quanto mais irritada mais esganiçada me ponho. É a ultima vez que a vais ouvir. Já se passou muito tempo em cima de nós, está na hora de desistirmos disto tudo, deste amor infantil, desta coisa que não é carne nem peixe, e eu já sem idade para essas modernices dos vegetarianos. Estou cansada, Cletinho, cansada de te falar e de não me responderes, de te tentar tocar com a ponta dos dedos e de seres só uma miragem que me ocupa a entrada da vida toda.

Para quê, Cletinho, para que foste tu entrar pela porta principal, sabendo perfeitamente que existe uma entrada nas traseiras? Para que foste enfiar-te no único sitio por onde se agarra a vida inteira, sabendo tu que essa vida era a minha e que não querias, ou podias, ou conseguias, contê-la na tua.

Anacleto Sousa Carvalho Gomes, dóis-me os dias, choras-me as horas e morres-me a cada instante. Estou velha e já te disse, o tempo já me passou por cima, e tu vais ter que me desamparar a vida. Um dia… um dia… um dia…

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